Ulá, Ulá...


O "Lionking" já tem nova casa mas, infelizmente, ocorreu um divórcio... é verdade... Mas, nem tudo é mau. A foebe ganhou uma casa só para ela e o "Coisas", os "bichinhos" e os desenhos animados estão agora todos juntos, num mesmo local, todos aconchegadinhos e amorecos. A partir de amanhã já publicarei novos textos e na terça feira, a "Foebe" regressa em força ( a probrezita ainda só tem umas linhazitas na sua nova morada), já toda composta e a revelar mais um pouco da sua aventura. Ainda em relação aos nossos três amigos, fiz algumas alterações, sendo uma delas, a não publicação de noticias mais antigas, mas acho que ficou bem jolie. O meu e-mail mantém-se: miadevlin1005@gmail.com, já o do Lion passou a ser: lionking4ever.blogs.sapo.pt e o da Foebe: foebe.blogs.sapo.pt, os nomes de cada um, são os deles mesmos, "Lionking4ever" e "Foebe". Espero sinceramente que gostem da nova casa e que não nos abandonem. Qualquer coisa já sabem, estou disponível no meu e-mail.


05/07/2015

Mia Devlin

Ilustres,

Como eu sou um génio no que resoeita à informática (vulgo nabiça), ainda ando embrulhada na cosntrução do novo blog; como tal, vou continuar  apublicar os meus devaneios/textos até ter tudo prontinho (pensava que ia ser hoje mas não... ontem quase que espumei até tentar perceber como é que a coisa se fazia... enfim... podia ser pior). Portanto aqui ficam as novas publicações.

ora tenham um bom dia,


Mia Devlin

01/07/2015

Olá a todos. Peço desde já desculpa pelos anuncios mas, esse é um dos motivos pelos quais o "lionking4ever" vai mudar de casa. Já estou a tratar de tudo e conto amanhã já ter tudo prontinho. Assim que tiver o endereço da nossa nova casita coloco aqui e, como anteriormente referi, amanhã já o torno público. Vá pessoas minhas, não pensem que estou para aqui cheia de mania, vá, vá, vá... só um bocadinho. Uma vez mais, peço desculpa pelos anúncios, pois sou completamente contra essa política de impingir o que quer que seja, contudo deixaram-me sem outra opção que não a de aceitar temporariamente, esta condição antes de abandonar este lar. Ah e não pensem que não fiz o trabalho de casa, porque fiz, amanhã verão o que andei a magicar...

Até amanhã caríssimos.

01/07/2015

Mia Devlin

Foebe

Foebe, como era chamada, corria lada a lado com o seu
cavalo, ultrapassando-o por vezes, nas partes em que o solo era mais
regular...  desde jovem que a sua
capacidade tinha sido atribuída à deusa Macha, protetora destes animais e que,
tal como Foebe, ou se preferirem, Foebe, tal como a deusa, possuía a força de
correr tanto quanto estas criaturas, rivalizando-lhes também em graciosidade e
leveza. Muitos chegaram a afirmar que Foebe era a própria deusa reencarnada,
pois desconhecia-se quem eram os seus pais, a sua origem, a sua herança. Dona
de uma beleza sem igual, a jovem mulher despertava a atenção de todas as
pessoas que com ela se cruzassem; a sua pele era mais alva que a neve, uma
tonalidade cremosa que rivalizava com a seda. O cabelo de um vermelho fogo,
caía-lhe em cascata até ao fundo das costas e brilhava como se pequenos
diamantes se tivessem agrupado, formando cada fio, envolvendo o seu tronco num
terno abraço; os olhos... ah os seus olhos, de formato amendoado e delineados por
longas e imensas pestanas, eram de um verde estonteante, como... como, esmeraldas,
e o seu corpo, de formas tanto generosas quanto graciosas, faziam dela uma
mulher belíssima, única, tal como o era a deusa que muitos acreditavam ser a
sua mãe.



Mia Devlin



Se fora Macha a trazê-la a este mundo se não, ninguém o
sabe, se Foebe é a reencarnação da própria deusa é outra incógnita, porém, o
que ninguém pode negar é que tudo nesta mulher corresponde perfeitamente à
descrição da deusa, feita havia tantas Eras atrás; como se tudo isto não
bastasse por si só para levantar suspeitas, Foebe tinha vindo ao mundo com uma
marca de nascença bastante incomum... uma mancha em tons de areia, no fundo das
suas costas, que, com o tamanho de um palmo, possuía a forma de um Pégaso... com
as devidas adaptações claro está, o Pégaso, ou os equinos são a imagem de
Macha, portanto, se juntarmos as suas características físicas ao facto de
acompanhar os cavalos em corrida e ter nascido com a marca da deusa...

Era livre, e essa sensação enchia-lhe a alma, desejando
pouco mais da vida. Nunca se tinha permitido prender a nada nem a ninguém, a
simples ideia de depender de alguém era o que bastava para lhe deixar o
estomago às voltas. Órfão de pai e mãe, crescera sozinho nas ruas movimentadas
e sujas de Alexandria, nos subúrbios da grande cidade. Era ali que aqueles que,
tal como ele, os que não eram dignos de pisar a calçada polida do centro, se
achavam confinados, mas isso a ele pouco ou nada importava, pois tinha a única
coisa que necessitava para ser feliz, a sua liberdade. Era um jovem bastante
alto se comparado aos demais daquela cidade... mas não era apenas em altura que
Salomon era diferente, era-o também no tom de pele, dourado, olhos negros como um corvo e
um cabelo louro repleto de madeixas que alternavam entre um tom dourado e um louro bastante claro, mas não tão claro que possa parecer branco; uma combinação bastante invulgar devo admitir. Possuía um porte
altivo que lhe era inato, atitude de todos aqueles seguros de si próprios, da
sua inteligência e beleza. Os seus braços eram fortes, com músculos delineados e as
pernas acompanhavam a descrição acima, numa perfeita harmonia... tudo naquele
jovem conjugava deliciosamente, mas a verdadeira perdição era o olhar, de um
negro profundo, olhar que levara já muitas soberanas a perderem a cabeça de
todas as vezes que as fitava...


Mia Devlin 02/05/2015


Sempre que
desejava estar sozinho, o que correspondia à maior parte das vezes, subia ao
telhado da Igreja, e ali permanecia durante horas, a observar o sol, que
gradualmente desaparecia no mar. Para muitos, aquela cidade era a
correspondência exacta do paraíso... se houvesse um Éden na Terra, seria
seguramente ali, naquela cidade edificada nas encostas de uma falésia. Muito do
que antes era rocha, dera lugar a pedra habilmente talhada pelo Homem, com
pontes que se elevam imponentes, assentes apenas nas margens, rumo a um
qualquer ponto a que alguém tivesse querido aceder. As ruas, feitas de seixos
que reluzem como estrelas, combinam na perfeição com o tom levemente dourado
das casas, a cor reivindicando o seu lugar nas flores que decoravam as janelas,
ou compunham um jardim.

 As construções, que primeiramente pareciam
dispostas ao acaso, eram o trabalho de arquitectos reais que nunca descoraram
qualquer pormenor de planificação... Quem visse a cidade ao longe, não hesitaria
em afirmar que aquele local poderia figurar de um belíssimo quadro em que o
Homem e a Natureza convivem harmoniosamente, como se tivessem trabalhado juntos
na construção daquele lugar, desde que o mundo é mundo... A cidade, que começou
por ser uma pequena vila de pescadores, foi crescendo consoante crescia o seu
poder, não somente comercial como também político, mas isso não bastou para que
lhe fosse arrancada a sua beleza natural, pois quem a edificara ao longo das
Eras sempre respeitou a vontade e beleza da Terra. Quem fora o seu primeiro
governante, qual o nome e origem do primeiro nobre bem como qual a primeira das
suas grandes casas, que agora proliferavam junto ao palácio do Ministro, ninguém
sabe dizer, mas uma coisa é certa para Solomon... ele sabia de cor que becos
conduzem a determinada habitação, que passagens secretas lhe permite aceder a certos
quartos, quem reside em cada uma das nobres e abastadas residências... e por
"quem reside em cada uma das residências ", é o mesmo que dizer, que belas
damas as governam e que leitos estão susceptíveis de receber o conforto que ele
tem para lhes dar.

Ali, no cimo
daquele telhado, ele observava ao longe a azáfama total que enchia as ruas da
Cidade das Esmeraldas. Carroças puxadas por cavalos, homens e mulheres que
apregoam os seus produtos, assumindo que o volume a que o faziam era
directamente proporcional ao aumento das vendas, as damas nobres que escolhem
os padrões de tecido que se irão usar na próxima estação... e, a um nível mais
profundo, dissimulada por todo aquele espetáculo, a complicada dança da
política. Uma cidade que era tão bela quanto se achava contaminada por todo
aquele lodo que envolve o mundo político... lodo que ele conhecia muito bem e
que, segundo muitos avançavam, era o mais exímio jogador, de todas as vezes que
se permitia abrir àquele mundo. E era por isso que ia para ali, para fugir de toda
aquela podridão em que se achava submerso até ao pescoço. Agora já seria difícil de escapar, para não dizer impossível, pensava
muitas vezes, desculpando-se por se deixar conduzir pelos acontecimentos ao
invés de tentar mudar o rumo que a sua vida teimava em tomar...


Mia Devlin



...


 

Ela
detestava a cidade... não pelo seu aspecto, que era de cortar a respiração, mas
porque as pessoas que lá viviam eram muito estranhas, e olhavam para ela como
se de uma aberração se tratasse. À medida que foi crescendo, as suas idas à
Cidade das Esmeraldas tornaram-se cada vez menos frequentes, até serem
praticamente inexistentes como agora. Mas isso não a impedia de subir a falésia
e de lá do alto, ficar a observar a vida que se desenrolava nas suas
atafulhadas ruas. Por vezes ficava tentada a descer, mas depressa se lembrava
do escrutínio de que era alvo e depressa mudava de ideias... uma vez ouvira
alguém comentar que era a filha de uma bruxa, que uma beleza daquelas não podia
ser natural, mas sim obra do demónio que a tinha colocado no mundo para seduzir
os homens... aquele comentário, para uma rapariga que não era pouco mais velha
que uma criança e que sempre se questionara sobre quem era a sua mãe e o motivo
pelo qual esta a abandonou, surtiram nela uma raiva enorme e da ingenuidade
resultante da sua idade, deu por si a correr por aquelas ruas ingremes, para
escapar ao guarda da cidade que a perseguia, em resultado da queixa apresentada
pela mulher que tecera o triste comentário. Segundo esta, a menina dos cabelos
cor de fogo ofendera-a tremendamente depois de lhe deitar a língua de fora...
pelo que a mulher afirmara, aquela atitude devia ser devidamente punida, sob
pena de no futuro, todas as crianças tomarem atitude idêntica... e assim, Foebe
viu-se obrigada a humilhar o guarda, quando este ficou para trás, momentos após
terem iniciado a corrida. Ainda hoje e já adulta, sentia a mesma vontade de
deitar a língua de fora àquela malvada mulher; faria tudo novamente e por todos
os motivos... pelo ar de espanto que lhe assomou à face quando a enfrentou e também
por ver o ar carrancudo do guarda quando este percebeu que nunca lhe iria
conseguir deitar a mão... o orgulho do homem ficou de tal modo ferido, que correu
de capacete e lança em punho, até às ruas mais escondidas da cidade, para se
salvaguardar que estaria fora do alcance dos olhares indiscretos quando se deixasse
cair com os joelhos no chão, a arfar de tal modo que parecia que os pulmões lhe
iriam saltar do peito a qualquer momento. Foram "dois coelhos de uma só
cajadada" e ficou certa de que, a partir daquele dia, a mulher e o guarda
teriam mais cuidado de todas as vezes que resolvessem subestimar as capacidades
de uma rapariga, pelo menos, daquela rapariga. A sua tia ficaria seguramente
chateada por saber que não se tinha arrependido minimamente, e muito provavelmente
iria ouvir um valente ralhete por isso mesmo, principalmente porque, uma coisa
é adoptar aquela postura em criança, outra, completamente diferente, é a
certeza de voltar a repetir a proeza, tantos anos depois... mas valeria a pena... oh se valia, pensou...

Shadow
aproximou-se dela devagar, quase como se não possuísse peso... vê-lo correr era
como observar uma linda pluma negra, qua avança suave e delicadamente, sem se
deixar ofuscar pelo ambiente que a rodeia. De perto, distinguia-se na perfeição
a sua possante musculatura, e se pegássemos numa pena e resolvêssemos desenhar
quantos músculos havia naquele belíssimo animal, poderíamos fazê-lo sem
qualquer problema, de tão definidos que eram. Quem o via parado, dificilmente
se deixava convencer de que aquele possante animal, não se ouvia de todas as
vezes que os seus cascos embatiam no chão enquanto corria, mas essa era a
realidade. Foebe amava aquele companheiro tanto quanto se amava a si própria...
desde que se conhecia como gente, que o tinha presente na sua vida e era
impensável imaginar a sua existência sem ele. Quando ele lhe bateu ao de leve
com o focinho para a fazer regressar do seu mundo de fantasia, sinal claro de
que ela tinha perdido, novamente, a noção do tempo, ela olhou-o profundamente
nos olhos e sorriu-lhe:

- Pela
deusa... vou chegar atrasada outra vez... qualquer dia a Tia põe-me as malas à
porta. Não fiques com esse ar presunçoso... se eu for, tu vens comigo e assim
acabam-se os torrõezinhos de açúcar, portanto é bom que nos apressemos meu
amigo.

Shadow  moveu a cabeça em sinal de concordância e
bateu com a pata no chão como se a quisesse apressar. Foebe ajustou a sela e
após verificar que estava tudo em ordem, subiu para o lombo do enorme cavalo
preto e iniciaram de imediato a cavalgada. Era uma imagem sem igual, de uma
beleza e perfeição que não cabem em palavras... à crina reluzente do cavalo,
juntavam-se os enormes cabelos ruivos da mulher que ondulavam com o vento, e ao
brilho que o pelo do animal exibia, misturava-se a brancura do vestido de
Foebe, que movia o seu corpo em plena concordância com as passadas de Shadow;
pareciam parte integrante de um mesmo ser, como duas peças de um puzzle que não
podiam encaixar se não uma na outra. Não demoraram muito tempo até chegar à
pitoresca casinha de madeira, erguida por entre os enormes pinheiros bravos que
enchiam a floresta. Fora Foebe e a tia que a tinham recuperado havia tantos
anos atrás. De acordo com o que lhe foi dito na altura, aquela era a antiga
casa de um lenhador, que não querendo dedicar-se mais ao seu ofício, abandonou
a floresta para ir viver na cidade. Por se tratar da obra de um hábil mestre, a
habitação achava-se quase intacta, mesmo estando inabitada durante muito tempo,
necessitando apenas de ser pintada e que uma ou outra tábua fosse colocada no
seu lugar de origem; à excepção disso, nada mais se achava fora do lugar. Fora
um prazer para si e para a sua tia decorar a casa... recordava-se na perfeição
dos dias passados no exterior a tratar a madeira que iria dar lugar às mesas e
cadeiras, camas e bancos... quando o tempo não se mostrava tão bom, ficavam na
sala a tecer colchas e cortinados, ou a mudar os móveis de lugar... tinha tido
uma infância muito feliz graças aquela mulher que a acolhera como se do seu sangue
se tratasse. Preparava-se para descer da sela quando Shadow elevou as patas
dianteiras no ar, quase a fazendo cair. Derrubou com as patas uma criatura
disforme que se preparava para os atacar... o monstro contorcia-se no chão
enquanto o cavalo o continuava a pisar, parando somente quando teve a certeza
de que o inimigo se achava sem vida. Foebe olhava em redor para ver se havia
mais criaturas como aquela, quando se apercebeu de um movimento no interior de
casa. A sua tia assomou à porta, o rosto coberto de sangue e o cabelo em
completo desalinho. O seu vestido, que se achava sempre imaculado, estava
rasgado em algumas zonas, e uma mancha de sangue enchia-lhe o peito. Foi nesse
momento que o medo tomou conta  dela... quando olhou para o rosto da outra
mulher e viu nele o horror da morte.

- Corre!
Vai-te embora Foebe! Já! - ordenou antes de fechar os olhos para sempre...


Mia Devlin


O garanhão
negro voltou-se de imediato, num movimento tão repentino que quase a fez cair

. Parecia que a ordem lhe fora dada diretamente e, sem qualquer tipo de
contestação, não hesitou em obedecer-lhe. Foebe puxou-lhe as rédeas com toda a
força que tinha, incentivando-o a voltar para trás, mas o animal não lhe
obedeceu e continuou a cavalgar, avançando tanto quanto as suas patas o
permitiam. Os cascos deixavam marcas no chão à sua passagem e, nas árvores,
pequenos ramos partidos denunciavam a passagem de alguém que não se dera ao
trabalho de apagar o seu rasto. Foebe apertava as rédeas com tanta força que os
nós dos dedos ficaram brancos... as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, lavando-o
do sangue proveniente dos arranhões, que lhe surgiam na face branca, de todas
as vezes que não se desviara a tempo de um ou outro galho. Sentia-se a tremer, e
era-lhe difícil manter-se firme na sela, como se o seu corpo fosse feito de
neve e tivesse começado agora a sucumbir aos efeitos do calor.

"Não desistas agora criança. Força". Foi o
que lhe pareceu ouvir, uma voz indistinta que não soube identificar de onde
provinha, nem tão pouco se era feminina ou masculina, mas que não questionou
como sendo real.

- Tia... tia...
Para! Temos que voltar para trás... temos que a ajudar! - berrava ao cavalo, a
voz lavada pelo desespero. Shadow não fez qualquer movimento que demonstrasse
tê-la ouvido e continuou a correr, aumentando ainda mais a velocidade, mesmo
que no fim sucumbisse, morto pelo cansaço.

- Porquê?
Que criaturas eram aquelas? O que queriam de nós? - continuava a gritar, sem
qualquer esperança de obter uma resposta...

O cavalo
começou a abrandar a marcha já o sol se começara a pôr, parando perto de um
riacho e deixando-se cair, com a cabeça na água. A mulher amparou-lhe o forte
pescoço e colocou a cabeça do animal nas suas pernas, enquanto, com as mãos em
concha lhe dava de beber.

- O que vai
ser de nós agora sem ela? A minha tia... morreu... - disse num sussurro. - Temos
que voltar. Eu tenho que tratar do seu funeral... eu não vou abandoná-la! -
afirmou, limpando as lágrimas com a manga do vestido. Shadow, que entretanto já
se achava em pé, relinchou e sacudiu a cabeça, como que a querer demonstrar que
se achava de acordo. Bastaram-lhe apenas segundos para se recompor da viagem e
Foebe nunca conseguiu perceber de onde provinha aquela força... parecia... magia...

- Por vezes
tenho a sensação que percebes tudo quanto digo... será que sim?! - e olhou bem
fundo naqueles enormes olhos negros, na certeza de que neles encontraria a
resposta de que tanto necessitava.  O
cavalo devolveu-lhe o olhar e novamente, abanou a cabeça em tom de
concordância.

Acordou com
o sol a bater-lhe no rosto e lentamente apercebeu-se do sítio onde se achava...
Shadow, que lhe tinha servido de encosto durante a noite, levantou também ele a
cabeça, fitando-a. Foebe recordou os acontecimentos de véspera e uma dor
atravessou-lhe o peito no mesmo momento... abraçou o cavalo e de novo as lágrimas
vieram, com força maior do que no dia anterior... afinal, não tinha sido um
pesadelo.

A Cidade das
Esmeraldas achava-se sobre um burburinho que deixava a todos em estado de
alerta. Nas ruas, corria a história de avistamentos de criaturas disformes, nem
humanas, nem completamente animais, um misto de ambos... segundo os relatos mais
dramáticos, tinham o tamanho de cinquenta pés e destruíam cidades como quem
destrói castelos na areia... outros, afirmavam que as suas mãos eram tão
poderosas quanto a mais dura pedra e ainda havia os que diziam ter-se cruzado com
as criaturas e, assim poderem afirmar, cheios de convicção que estas eram obra
de Carmandon, o Rei Negro e da bruxa que tem como conselheira, que era chegada
a altura de ambos declararem a guerra sobre a luz. "Os demónios foram
libertados", declaravam uns... "É o fim do mundo", anunciavam outros... Salomon
escutou tudo aquilo com atenção, mas sem se demorar depois a pensar no assunto.
"Basta um homem que beba demais, para
avistar uma galinha e afirmar que se tratava de um monstro que cospe milho"
pensou, e seguiu o seu caminho em direção a um palacete branco, que brilhava à
luz da manhã como pérolas.

13/05/2015

Mia Devlin


Shadow
avançava devagar sobre o tapete de folhas douradas que se estendiam até à
entrada do jardim da casa que, outrora fora de Foebe e da sua tia. Antes de
entrarem, a mulher puxou-lhe as rédeas e ao descer deixou-o do lado de fora da
cerca... já tinha perdido a sua tia, não se ia arriscar a perder o seu melhor
amigo também, e por isso decidiu deixá-lo no lado de fora, na esperança de que
se houvesse um novo ataque ele ficaria a salvo. Avançou, pé ante pé, a
perscrutar o espaço para ver se havia algo, ou alguém à espera. Nada, apenas o silêncio,
quebrado uma ou outra vez por um pássaro que piava ao longe. Virou-se para trás
de repente, em resultado do baque surdo de pés que embatem no solo.... O cavalo
empurrou-a para a frente, incentivando-a a avançar e mostrando-lhe claramente
que não se achava com disposição para sermões. A mulher obedeceu sem pestanejar
e avançou, agora mais confiante do que antes... custava-lhe a ideia de que algo
de mal podia acontecer a Shadow, mas o fato é que a presença dele fazia surgir
nela uma força e coragem enormes, como se a simples certeza de ele se achar ali,
fosse mais do que suficiente para lhe garantir que tudo iria correr bem. O
coração  batia-lhe desenfreadamente no
peito à medida que avançava para a porta de sua casa. Não havia quaisquer
sinais de que algo de terrível tivesse acontecido naquele pedaço de terra e não
fora a presença de salpicos de sangue na soalheira da porta a juntar à ausência
do sorriso rasgado com que a tia sempre a recebera, ninguém iria supor o pior.
A porta rangeu quando a empurrou... levou algum tempo a habituar-se à penumbra do
lugar, completamente mergulhado nas trevas. As janelas tinham sido fechadas com
as trancas, impedindo a luz de entrar e o cheiro que lá pairava dentro, de
sair. Foebe teve que encostar a manga do vestido ao nariz para não vomitar... no
ar, pairava o cheiro de suor e pelo molhado, como se um enorme cão e um bando de
homens ali estivessem estado a correr durante dias... mas não era apenas a cães e
transpiração que cheirava... sentia-se o intenso cheiro a ferro... mas não provinha
do metal mas sim de sangue... quando os seus olhos se habituaram à escuridão e
com a luz que provinha da porta aberta, Foebe apercebeu-se do estado em que se
achava a sala... a maior parte dos móveis estavam despedaçados e espalhados pelo
chão e até do teto o candeeiro de velas tinha sido arrancado e atirado para
longe, louça, jarros de flores, os cortinados que ela e a tia tinham costurado...

- Destruíram
tudo... - e agarrou-se àquele pedaço de tecido que guardava em si, tantas
memórias. Continuou a avançar, agora sem receio, apenas com uma enorme vontade
de tentar descobrir qualquer indício do que acontecera ali e, principalmente,
quem fizera aquilo à sua tia. Percorreu todo o cumprimento da casa até chegar
às traseiras e foi ali que a última réstia de esperança se desvaneceu. O corpo
da sua tia jazia já sem vida, junto ao canteiro das rosas de que tanto gostava.
Foebe correu para junto do corpo e deixou-se cair de joelhos, enquanto com a
mão, fazia o corpo da tia rolar sobre si próprio, até ficar com a face voltada
para cima. Os olhos que a encararam, eram o completo espelho do horror que havia
vivido antes de abandonar este mundo... Foebe agarrou-a com quanta força tinha e,
em soluços embalou-a até ao momento em que a última lágrima lhe percorreu a
face.

Sepultou a
tia naquele mesmo lugar, junto das suas queridas rosas, tratou de tudo tão bem
quanto pôde, e partiu decidida a encontrar os culpados e fazê-los pagar. Levava
consigo o dinheiro que a sua tia juntara durante longos anos, dinheiro que
fizera com as vendas de vestuário e outros trabalhos de costura... não tencionava
gastá-lo todo, apenas o suficiente para conseguir alojamento e alimentação na
cidade... afinal, via o dinheiro como não sendo seu e achava uma afronta à
memória da sua tia usá-lo. A intenção era repor depois o que gastara, para
assim poder recuperar aquela casa... afinal, era ali que vivera toda a sua vida e
era ali também que a sua tia estava sepultada. Subiu ao andar superior, local
onde se achava o seu quarto, e trocou de roupa, um vestido mais adequado à
viagem e uns quantos outros que lá se achavam. A verdade é que nunca sentira
necessidade de ter muita coisa e em pouco tempo tinha numa pequena mala de
cortiça todos os seus pertences. Na pequena mala, colocou também o papel que
tinha tirado das mãos da tia e que sabia ser-lhe endossado. Sentou-se na cama
de ferro, que reagiu ao de leve com um som metálico, e iniciou nova leitura.
Era-lhe claro que a carta não fora escrita aquando da sua morte, por isso não
saberia precisar há quanto tempo esta a tinha, o que em nada ajudou para
esclarecer as perguntas que lhe inundavam a mente. Com uma caligrafia delicada
e cheia de arabescos, a mulher que cuidara dela como se de uma filha se
tratasse, pediu-lhe perdão por não ter tido a coragem de lhe dizer pessoalmente
quem ela era e quem eram os seus pais... disse-lhe que procurasse onde a antiga
magia se encontrava escondida, advertindo-a para os enormes perigos que dali
advinham... disse-lhe que ela não era uma criança normal, que havia algo nela que
só quando iniciasse a sua verdadeira jornada é que iria descobrir... Falou-lhe
também em Shadow e do modo em como este representava parte de si mesma, ligando
passado, presente e futuro. A carta em nada servira para a ajudar, muito pelo
contrário, veio fazer tremer o seu já delicado mundo, por completo. Se ela já
anteriormente quase se deixara consumir pelas dúvidas, agora sentia-se a
sufocar... sem se deter por muito mais tempo sobre o assunto, dobrou a carta em
quatro e guardou-a dentro da mala, desceu as escadas e conjuntamente com
Shadow, rumou à cidade.


Mia Devlin 16/05/2015


- Ela estava
vivia... - murmurava, o único meio que a mantinha ligada ao mundo real. Desde a
morte da tia, que começava a desejar entrar num mundo feito de sonhos, um mundo
onde nada a podia magoar. E de todas as vezes que estava prestes a entregar-se
a esse mundo, obrigava-se a regressar. - Quando partimos Shadow... ela estava
viva. Eu podia tê-la ajudado mas fugi como uma cobarde. Ela já estava morta quando partiste. Dizia-lhe  a voz que já havia escutado anteriormente...
Devido ao seu estado frágil, começava a achar que aquela voz era um sinal claro
que tinha que ter bastante cuidado, para não abrir uma porta que podia não
conseguir fechar. Mas não agora... por agora ia deixar que aquela voz falasse com
ela... distraía-a, e de alguma forma, acalmava-a. - Não, não estava. Quando vi o
seu corpo tombar e a expressão de terror nos seus olhos, assumi que estava
morta. Fugi... podia ter ido verificar se estava mesmo morta! - respondeu para
ninguém... Não sejas tola criança! Ela já
estava morta;  mesmo que não tenha
morrido naquele preciso momento, o veneno proveniente dos dentes da besta que a
matou estavam de tal modo impregnados com o veneno das trevas, que nada neste
mundo a podia salvar! Foebe abanou a cabeça para afastar aqueles
pensamentos; achou por bem, colocar a voz de lado, pois achava-se muito perto
de cair no precipício que queria evitar. Ainda
é cedo para te contar certas coisas... ainda não estás preparada... eu sei que tudo
isto é difícil de ultrapassar, mas tu não és uma rapariga normal. És minha
filha, e eu não vou permitir que quebres. Não agora... - Vai-te embora!
Desaparece! Eu não quero ouvir mais nada! - gritou, revoltada e confusa, as
mãos a tapar as orelhas como se aquele gesto fosse capaz por si só, de a
impedir de ouvir uma voz que vinha dentro da sua cabeça. Shadow estacou de
repente... sobre eles, a Cidade das Esmeraldas, mostrava-se em toda a sua glória
e esplendor. Foebe olhou para baixo e incitou o garanhão a descer a falésia... de
nada lhe valia ficar ali parada... se existiam respostas às suas questões, não
seria ali que havia de as encontrar. Pedaços de terra rolavam sobre as patas do
cavalo, enquanto a mulher fazia por manter-se o mais leve possível, de modo a
facilitar o caminho ao animal. Quando por fim alcançaram terra firme, Foebe
perguntou-se se havia feito a escolha certa... mal entrara na cidade e todas as
atenções se concentravam nela e na sua montada... pese embora não fosse essa a
sua intenção, cavalo e cavaleira pareciam troçar de todos os outros da sua
espécie, de tão lindos e perfeitos que eram. As mulheres cochichavam entre si e
os homens lançavam-lhe olhares atrevidos... encarou-os, pronta para lhes dizer
tudo aquilo que mereciam ouvir! Não a conheciam, não sabiam aquilo pelo que ela
tinha passado, mas mesmo assim não se coibiam de ser indelicados. Porém, deixou
todas aquelas pessoas no lugar onde estas pertenciam ... para trás. Percorreu as
íngremes ruas durante várias horas, alheia à disposição da enorme cidade, até por
fim encontrar uma estalagem. "Martelo de Ferro", era como se chamava... estranho
nome para uma estalagem  numa cidade como
aquela, pensou, mas entrou sem se deter por muito mais tempo no assunto. Lá
dentro, pediu ao estalajadeiro para que providenciasse água e comida para o seu
cavalo, deixando porém bem claro que, da sua limpeza e cuidado ela própria se
encarregaria. O homem, baixo e roliço, franziu as sobrancelhas perante aquele
pedido mas não lhe fez questões, limitando-se a afirmar com a cabeça.

- Quer que
peça a uma criada para lhe preparar um banho a... senhora? - perguntou o
estalajadeiro, não sabendo como dirigir-se à rapariga que, apesar do vestido
simples, falava com um porte de rainha, como se trajar aquele vestido de
simples corte, fosse um ato de menina de boas casas que quer afrontar os pais.

- Isso seria
muito agradável, obrigado. E pode tratar-me por "menina".

- Como desejar
- respondeu-lhe o homem, que ficou ainda mais confuso. - A refeição é servida
pouco depois do sol se pôr. Hoje temos cabrito com nabos e batatas e, modéstia
à parte, não encontrará tão bom cabrito em outro lugar que não aqui.

- Vou comer
no quarto se não se importar... Estou muito cansada.

- Oh, mas é
claro. Como desejar - afirmou e passou por ela, indicando-lhe que o seguisse
depois de pegar na pequena mala que ela trazia consigo. Depois do homem a
deixar sozinha, olhou em redor para avaliar o quarto... o estalajadeiro não se
comedia na hora de providenciar para que nada faltasse aos seus hóspedes, pois
mesmo tendo pago por um quarto barato, não lhe faltava comodidade... a cama, não
de casal, mas não tão pequena para um corpo só, achava-se colocada junto à janela.
Junto desta, uma pequena mesa  de
cabeceira continha um pequeno candeeiro a óleo e um lenço com flores bordadas
que combinavam com as cortinas da janela e a colcha da cama; na parede oposta,
uma tina e um jarro com água providenciavam para que o hóspede não tivesse que
abandonar os aposentos se apenas queria lavar o rosto e num dos cantos, uma
lareira, tornaria o quarto agradável nos longos meses de inverno. Agradável, mas duvido que permaneça aqui
tempo suficiente para me habituar a ele, pensou antes de ouvir um baque
surdo na porta.

- Sim?! -
respondeu ao toque, e a cabeça de uma senhora que aparentava ter cerca de
quarenta anos de idade, assomou à porta.

- O banho
está pronto menina. Se quiser fazer o favor de me acompanhar - anunciou a
mulher.

- Claro -
respondeu-lhe, pegando num dos vestidos que tinha trazido consigo. O quarto de
banho, situava-se no lado oposto do corredor o que a alegrou, pois nada a
deixava de melhor humor, do que um bom banho, capaz de lavar corpo e alma.
Quando a mulher abriu a porta, o vapor bafejou-lhe a face e ela fez sinal à mulher
para que esta se fosse embora. Queria ficar sozinha, tinha que delinear um
plano e precisava de estar só com os seus pensamentos se o queria fazer. Entrou
na banheira de madeira, um pé depois do outro, a pele clara a ir de encontro à
água que fumegava. Mergulhou de imediato, os dedos a taparem-lhe o nariz e quando
voltou à tona, afastou o comprido cabelo do rosto e abriu os olhos... um
lindíssimo homem de cabelos claros e olhos negros, contemplava-a a um canto...


18/05/2015

Mia Devlin


- Pelos
deuses rapariga. Quem és tu? - perguntou-lhe num sopro. Estava completamente
extasiado com ela, sentia o coração bater-lhe desalmadamente no peito e as
pernas tremiam-lhe como varas ao vento. Sacudiu a cabeça para afastar aqueles
pensamentos... Nunca perdi o controlo
perante uma mulher, não vou começar agora. Mesmo que seja a mais bela mulher
que eu alguma vez vi... pensou. Foebe preparava-se para gritar e num
movimento que não durou mais do que poucos segundos, ele estava por detrás
dela, com a mão sobre a sua boca.

- Calma
boneca. Não é preciso sentires-te com vergonha pois se há coisa que eu conheço
bem, é o corpo feminino - afirmou, com a arrogância que lhe era característica,
completamente patente na sua atitude. A rapariga esperneou e não se conseguindo
soltar mordeu-o. Solomon abafou o grito de dor e abanou violentamente a mão
enquanto olhava para ela, cheio de vontade de lhe fazer o mesmo. Foebe, que já se
achava coberta pela toalha, avançou para ele pronta a dar-lhe uma bofetada de
tal modo forte, que o obrigaria a pensar duas vezes antes de se voltar a meter
com uma mulher daquela maneira.

- Podes ser
dona dos mais belos olhos que eu jamais vi, mas isso não chega para que permita
que me batas - encarou-a, segurando-lhe no pulso, mas não com força suficiente
que a magoasse.

- Solta-me
ou vais arrepender-te, seu, seu, seu bruto - gritou-lhe, não se lembrando de
nenhum outro adjetivo, mau o suficiente, para lhe chamar. A verdade é que não
conseguia pensar em nada de mau quando o olhava... ele era a imagem perfeita de
um deus, e no fundo, apenas desejava tê-lo perto de si uma vez mais. - Como é
que te atreves a entrar aqui, comigo nestes preparos?! E como se isso não
bastasse por si só, ainda tens a ousadia de me tapares a boca e chamares-me
"boneca"?! Boneca?! Nunca ouvi nada tão bimbo - e conseguiu. De uma sé
cajadada, atingira-o no sítio onde a ferida seria mais profunda... no ego.

- Bimbo?! -
afirmou, um sorriso trocista a nascer-lhe no rosto e mal dissimulando a raiva.
- Para tua informação, esse termo faz cair muitas donzelas aos meus pés.

- Acredito...
afinal, pessoas cujo cérebro não é maior do que o dum camarão...

- Ouve lá
rapariga. Mas quem é que tu julgas que és para falares assim das minhas... hum,
amigas?

- Eu
estou-me nas tintas para ti e para as tuas amigas! Quero que saias
imediatamente daqui, mas não sem antes me pedires desculpa - declarou, com um
tom de voz que não admitia o contrário.

- Deves ter
engolido muita água quando mergulhas-te, de certeza. Eu não peço desculpa a
ninguém, boneca.

- A mim vais
pedir. Da maneira como olhas para a porta, e por te achares no banheiro
feminino, seminu, com o cabelo em pleno desalinho e com marcas de unhas no
pescoço, depreendo uma de duas coisas. Ou andaste a dormir com um gato, ou com
uma gata... e por estares em fuga, algo escondes... Se não queres que grite de
maneira a informar esse alguém que aqui te encontras, é bom que peças,
"bichaninho" - ameaçou-o e sorriu, ao perceber que um breve tremor lhe passou
pelo corpo.

- Criança
insolente. Que sabes tu da vida para me vires ameaçar? Podia facilmente
amarrar-te e deixar-te aqui até me apetecer.

- Pois
podias, mas ambos sabemos que não o farás. Portanto, como é que vai ser? Já
para não dizer que, mal te vissem aqui irias preso, seguramente. E garanto-te
que, no que depender de mim, ficarás a apodrecer numa cela bafienta durante
muito tempo. - Ele fitou-a durante uns segundos, a ponderar se ela iria cumprir
aquilo que acabara de dizer e concluiu que sim.

- Desculpa -
pediu, num tom de voz quase inaudível.

- Como?
Pareceu-me que disseste qualquer coisa mas, não percebi.

- Desculpa!
E agora, já ouviste?! Só se fores surda é que não ouviste, porque estou certo
de que até em Alexandria se ouviu! - respondeu-lhe mal-humorado.

- Estás
desculpado - disse-lhe  a sorrir. - E que belo sorriso ela tem... pensou, mas recuperando
de imediato o controlo sobre as suas emoções. - E vais dizer-me porque é que
invadiste o banheiro feminino?

- Isso não é
da tua conta. Mete-te na tua vida, rapariga abelhuda.

- Calma, não
é preciso ficares todo rancoroso apenas porque te passei a perna.

- Tu
passaste-me a perna?! Ganha juízo rapariga. - Quando se voltou para a encarar,
Foebe estava sentada num banco de madeira a enxugar o cabelo com uma toalha,

 os enormes olhos verdes presos nele. - E tu, de onde vens? Nunca te vi por
estas paragens.

- Estou a
resolver... uns assuntos de família - respondeu-lhe, enquanto virou o rosto para
que ele não reparasse nos seus olhos, agora vítreos pelas lágrimas. Mas ele
reparou e, conhecendo as mulheres como conhecia, sabia que não devia avançar
mais... não por agora.

- Bem, acho
que já é seguro regressar. Foi um prazer... - disse-lhe, deixando a frase
suspensa no ar para que ela a completasse com o seu nome ou algo mais.

- Adeus -
foi tudo quanto ouviu daquela belíssima mulher. Uma nova bofetada no ego que
ele não iria deixar passar em vão. Num piscar de olhos achava-se diante dela, os
lábios tão próximos que era possível sentir o leve aroma a menta que ela exalava.
Fechou os olhos e quando sentiu que ela cedia, quando sentiu que o sangue
corria-lhe depressa nas veias, o suave inclinar de pescoço a responder ao seu
gesto... largou-a.

20/05/2015  Mia Devlin


Foebe
sentiu-se ser consumida pela raiva... Ele olhava agora para ela com o ar altivo
de quem pregou uma boa partida a alguém e, saiu vitorioso. Com um leve gesto de
cabeça e uma exagerada vénia, saiu da casa dos banhos, tão silenciosamente
quanto havia entrado. Isto não vai ficar
assim... hei de fazer-te engolir dez sapos antes de aceitar o teu pedido de
desculpas. Garanto-te, pensou enquanto que, com a toalha já no chão,
mergulhava novamente na enorme tina de madeira. Retomou o que estava a fazer,
tentando inutilmente afastá-lo da sua mente... quem era ele, qual o seu nome e o
que estaria um homem a fazer num aposento destinado às mulheres? Mas mais
importante que a resposta a todas estas questões, era o facto de estar
consciente que a pergunta mais importante não fora feita... se ela o veria
novamente. Obrigou-se a erradica-lo da sua mente, não o conheço e não tenciono vir a cruzar-me com ele novamente,
disse a própria, ignorando o quanto aquelas últimas palavras lhe soaram a
falso...

Que a escuridão me consuma se me quero
voltar a cruzar com aquela criança insolente novamente! Mas quem ela julga que
é para me falar naquele tom?! Uma rapariga que julga já conhecer o suficiente
do mundo para me vir ensinar como me comportar. Já para não dizer que, deve ser
quê! seis, sete anos mais nova do que eu?! E é se não for mais... o seu
pensamento foi interrompido pela mulher que se achava a seu lado, naqueles
lençois de linho branco da estalagem. Tivera que sair abruptamente do quarto,
quando o rapaz que deixara de atalaia a troco de umas moedas de cobre, o
informara que o marido da referida mulher, estava no balcão da receção a
perguntar ao estalajadeiro se havia visto a sua esposa. Desta vez tinha
conseguido escapar por pouco... a mulher, voltou-se sobre si própria e aninhou-se
no peito de Solomon. Este, afastou-a levemente evitando acordá-la. Queria ficar
só com os seus pensamentos e não suportava mais contato físico do que o
necessário, principalmente se esse contacto fosse sinónimo de gestos de afeição
e  carinho. Com os braços cruzados por
baixo da cabeça, contemplava o teto por cima dele... quem era ela? Nunca a tinha visto... uma mulher daquelas era difícil
passar despercebida, principalmente aos seus olhos. Os seus pensamentos
alternavam entre a rapariga ruiva que tanto havia mexido com ele e as mentiras
que a imaculada esposa que dormia a seu lado tinha contado ao marido. "O tolo
acabou a pedir-me desculpa e ainda me deixou dinheiro para pagar o quarto de
hotel", afirmou à gargalhada. Segundo ela, o marido não contestou as lágrimas
que lhe caiam pelo rosto quando ela interpretou o seu papel de esposa ofendida
pelas acusações injustas do marido... este era um dos motivos pelos quais ele se
recusava a confiar nas pessoas. Um bando
de mentirosos, que não pensam duas vezes antes de se espetarem facas nas costas
uns dos outros com a mesma facilidade com que respiram. E as mulheres são
piores ainda..., e voltou a afastar a mulher que tinha tentado novamente
deitar-se no seu colo. Então
porque é que ela me pareceu diferente?, questionou-se. Foram os olhos... de certeza. E a pele mais suave que a seda... e o cheiro
do seu cabelo... ou os lábios cheios...


...

Ela tinha-se
levantado ainda o sol não despertara no horizonte. Estava habituada a
levantar-se cedo e não ia quebrar esse hábito por se encontrar na cidade. Do que a
tia lhe contara, os habitantes das grandes cidades tinham o hábito de se
levantarem algumas horas depois do sol nascer e isso causava-lhe aflição.
Vestiu o seu melhor vestido, prendeu o cabelo numa trança e depois de passar o
rosto por água, achou que estava bem para sair e enfrentar tudo quanto o dia
lhe reservava. Sabia que seria duro obter informações, em parte porque as
pessoas a olhavam de maneira estranha, em parte porque mesmo aqueles que se
mostrassem dispostos a falar, depressa mudariam de ideias assim que lhes
começasse a relatar criaturas disformes que cheiravam a cão molhado. Mas tinha que
tentar. Não havia outra maneira de descobrir fosse o que fosse se não fizesse
questões. Desceu as escadas devagar pois não queria acordar ninguém e quando
chegou ao salão principal, o estalajadeiro que já se achava levantado, bem como
a mulher que a acompanhara à sala de banhos, se mostraram surpresos por ela
estar já de pé. Depois de lhes dizer que era seu hábito levantar-se muito cedo,
pediu um copo de leite e pão com queijo, enquanto aguardava que o moço da
estrebaria selasse Shadow. Ela advertira o estalajadeiro para que mais nada
fosse feito ao cavalo, pois este não reagia bem quando um estranho se
aproximava demais. Quando se prepara para abandonar o salão, perguntou ao homem
se sabia quem era o homem de olhos negros que vira. Não soube porque fez aquela
questão, mas quando deu por si as palavras já haviam abandonado a sua boca.
Baixou a cabeça para esconder o embaraço, enquanto aguardava a resposta.

- Ele
pediu-me que lhe entregasse esta carta, caso você perguntasse por ele, Senhora
- informou-a o homem de avental imaculado. Com
que então esperou que eu perguntasse, caso contrário não receberia a carta. Matreiro!

- Obrigada - disse, e dirigia-se para a porta quando o homem a
interrompeu.

- Permita-me, Menina - afirmou,
com um certo tom de embaraço na voz, enquanto demonstrava claramente, não estar
certo de avançar com o que pensava. - Não é meu hábito invadir a vida pessoal
dos meus hóspedes, até porque a descrição é o principal motivo pelo qual o meu
estabelecimento é procurado, mas...

- Mas... - incentivou-o,
tranquilizando-o. - Não se preocupe. Não ficarei incomodada com o que me disser.

- É que o Mestre Solomon é
conhecido por ser... bastante afável com as mulheres. - Perante o olhar confuso
que a rapariga lhe lançou, apressou-se a acrescentar. - É conhecido por ser de
todas as mulheres, para nunca ser de nenhuma. É claro que ninguém o pode, ou
sequer se atreve a acusá-lo seja do que for, principalmente, por causa das
damas que, supostamente, claro está, com ele se encontram.

- Oh, não. Não, de todo. Apenas
estou a tentar encontrar respostas a algumas questões, e o Mestre Solomon ficou
de me ajudar. Apenas isso - mentiu, pois não queria ser indelicada para com o
homem que, demonstrava estar apenas preocupado, sem qualquer maldade. - Eu
tenho que ir agora e, uma vez mais obrigada. Estarei aqui quando forem horas de
jantar. Adeus, Mestre...

- Alvim, Menina. Trate-me apenas
por Alvim.


22/05/2015

Mia Devlin


Com uma caligrafia bastante delicada, até mesmo para uma mulher, a mensagem transpirava
a sensualidade do punho que a escrevera.

Olá
criança. Não pude deixar de estranhar a tua presença na cidade, assim como não
consegui ficar indiferente às lágrimas que quase rolaram dos teus olhos. Estou
certo de que neste momento te encontras toda empertigada, perguntando que me
interessa a mim, os motivos que te fazem chorar e, antecipo-me na resposta... não
me dizem respeito é certo, porém, como homem, não posso permitir não oferecer
os meus préstimos a uma jovem senhora que se encontre sozinha nesta enorme
cidade, onde os perigos espreitam em cada esquina. O nosso primeiro encontro
não decorreu tão bem quanto eu desejaria e permite-me que me desculpe pelas
atitudes que tomei. Para que nos voltemos a encontrar, basta que te dirijas à fonte
que se encontra no meio da praça principal, quando o sol atingir o seu pico
máximo no céu.

Votos de
uma boa manhã.

Solomon

O estomago dela estava às voltas e reprimiu com tanta força tinha, os tremores que lhe
percorriam o corpo. Ele havia provocado nela diferentes emoções... maioritariamente
havia-a arreliado, mas não conseguia negar o fato de existir algo nele que
mexia com ela. O mais certo é que não
consiga ir. Não posso esquecer o motivo que me trouxe aqui e, andar com ele a
tira colo não vai ajudar em nada a minha missão, dizia a si própria
enquanto dobrava a carta num sopro e, cuidadosamente a guardava junto ao peito.
Quando saiu da estalagem e se dirigiu aos estábulos, não conseguiu não esboçar
um sorriso. Uma voz dizia-lhe no mais ínfimo do seu ser que nunca mais estaria
sozinha...

 

O que é que me passou pela cabeça para lhe
ter deixado a maldita carta? A rapariga deve ter despertado em mim um qualquer
instinto protetor... é isso. E o mais certo é que nem deva aparecer, depois da
maneira como me comportei... raios! Nem sequer consigo perceber se quero que ela
venha, ou não! Estes e outros pensamentos dominavam-lhe o espirito de tal
modo que, esbarrou mais do que um par de vezes em pessoas que, passavam na
praça, já menos apinhada àquela hora do dia. A praça central marcava o ponto alto
do comércio, com várias lojas que expunham os mais diferentes produtos, desde
tecidos a velas aromáticas, mas todos eles dirigidos a um único público... ao das
casas nobres. Umas quantas bancas, todas elas respeitando a mesma construção e
cor, uma madeira bastante escura, quase preta, colocadas nos espaços que
entremeavam umas e outras, demonstravam claramente que tudo naquela cidade
obedecia a padrões rigorosos que, se quebrados, atiravam os infratores para a
sala de interrogatório. A ostentação que ali se respirava, tão habilmente
disfarçada por todos aqueles que dedicavam a sua vida à manutenção da cidade,
era um dos muitos sinais de que o Ministro se fazia valer para demonstrar aos
demais representantes de outros reinos, o quão faustoso era o pequeno império que mantinha
sobre a sua alçada.  As mulheres das
bancas apregoavam os seus produtos num tom de voz já não muito alto, na
esperança de ainda conseguirem vender os artigos que não tinham sido escoados de
manhã. Bem no centro da praça, uma fonte de mármore branco, lançava a água a
uma altura superior a vinte pés, criando um efeito delicioso de todas as vezes
que, vindo de diferentes partes da fonte, o transparente e cristalino líquido se
cruzava entre si. Os desenhos, harmoniosamente incrustados na pedra, representavam
a história da cidade enaltecendo todos os Nobres que haviam feito da mesma aquilo
que é hoje, um mar de esplendor e glória que causava a inveja de muitos monarcas.
Como se o próprio material da fonte não bastasse por si só para revelar a
riqueza que a cidade possuí, relevos de plantas na base da mesma foram pintados
com tinta de ouro e dali, partiam rumo ao céu, terminando na espada erguida de
um homem que, sendo todos os Ministros de Esmeralda, não era nenhum em
particular. Solomon olhava para a fonte e pensava como era ridículo que ali, no
meio da praça central, e já a pouca distância de Alexandria, um monumento
ostentasse tão descaradamente a riqueza que faltava ao povo que habitava nas
ruas desta última. Eram duas partes integrantes do mesmo corpo, porém, uma
representava a glória, a outra, a humildade de todos aqueles que trabalhavam
quase na beira da escravatura, servindo os grandes senhores ou os comerciantes
abastados. A clivagem social era enorme e completamente escancarada para todos
aqueles que se dessem ao trabalho de sair um pouco da orla da cidade das
Esmeraldas, para penetrarem em Alexandria. Filhos de bácoras
 que se empanturram o dia inteiro, para se acharem demasiado cheios à
noite, altura em que deviam estar mais atentos ao seu leito, pensou com
azedume. Olhou em volta para se recordar que a vida era assim mesmo e, que um
dia, aquela parte da cidade seria sua... Para isso bastava-lhe encontrar a
parceria ideal. As casas talhadas na rocha, transmitiam um efeito de escada
para todos aqueles que se achassem na praça, culminando no majestoso Palácio do
Ministro, que encimava de forma gloriosa o leque de construções que se estendia
a seus pés. E aquele será o meu prémio,
ou eu não me chamo Solomon. De facto, eu não sei se é esse o meu nome, tão
pouco o meu apelido. Pouco importa, quando envergar a faixa que me concede o
estatuto de Ministro arranjo um, pensou, para depois colocar aqueles
pensamentos num lugar bem guardado, no fundo da sua mente. Com a mão em concha,
olhou para o céu, procurando definir com exatidão se ainda faltava muito para o
meio do dia.

- Eu nunca
me atraso - anunciou uma voz de veludo. Ele voltou-se de repente para a
encarar, os olhos negros fixos nuns outros, tão verdes e vivos como nunca tinha
visto igual, e o mundo parou subitamente. Sentia-se como se alguém lhe tivesse
dado um murro no estomago... Ela era a personificação da própria beleza... trajava
um vestido cinzento pérola, onde arabescos prateados pontilhavam as mangas e a
gola. O tecido colocava-se-lhe ao corpo na perfeição, como se se fundisse em
cada contorno das suas estonteantes curvas. O cabelo, de um vermelho fogo,
estava preso numa trança feita elaboradamente por mãos delicadas e decorada
aqui e ali com pequenas flores brancas. Quando a olhou novamente nos olhos,
recebeu em troca o canto da boca rasgado num sorriso em lábio cor de ameixa. Se ele soubesse que esta é a primeira vez a
que chego a horas a qualquer lugar..., pensou e sorriu abertamente.

- Pois, estou a ver... O que foi? Disse, ou fiz algo que te fez sorrir assim?

- Não. Foi apenas algo de que me lembrei. Quero agradecer-te pela preocupação tida para
comigo.

- Não tens que agradecer... foi a forma que arranjei para me desculpar pelas minhas ações na
sala de banhos - balbuciou, os olhos negros pregados nos dela.

- Desculpas aceites. Recomeçamos? - perguntou-lhe com a mão estendida.

- A um recomeço, sim - concordou, e selou o pacto de paz com um aperto firme. Gesto
que lhe permitiu sentir o quão sedosa era a sua pele.


26/05/2015

Mia Devlin


 - Vamos então?! - sugeriu ele, com um rubor a
assomar-lhe à face. Virou a cara para o lado na esperança que ela não
reparasse, mas mais facilmente uma lebre escapava à visão aguçada de uma águia,
que um gesto de embaraço a Foebe.

- Escusas de disfarçar, eu vi - disse numa leve risada. - Nunca pensei que um homem como tu
pudesse corar - espicaçou-o, enquanto fazia malabarismos, para não embater nos
vasos de flores viçosas, espalhados ao longo da rua branca. Ele deu-lhe o braço
para que não se desequilibrasse e ela não se fez de rogada, aceitando o gesto.
Caminhavam agora como dois apaixonados, que viviam os primeiros momentos da sua
história de amor.

- Como assim, "um homem como eu"? - perguntou-lhe. Ela olhou-o por um longo momento e
depois decidiu por não lhe responder. - Nada, esquece.

- Não esperas que aceite um "nada" como resposta, pois não?

- É o eu te darei, portanto não tens outro remédio senão aceitar - afirmou, encarando-o com
o ar de quem se estava a divertir bastante a provocá-lo.

- Vou deixar-te pensar que sim, veremos se não me responderás. Mas, enquanto isso,
não quererás por ventura acompanhar-me num almoço?

- Isto é um encontro?

- Mas é claro que é um encontro! - afirmou, detendo-se na palavra encontro, e
continuou: - Quando duas pessoas combinam ver-se, vão ao encontro - novamente a
dar demasiado enfase à palavra "encontro" - uma da outra -concluiu, tentando
que as suas palavras soassem o mais natural possível.

- Tu percebeste perfeitamente a minha questão, senão, não te terias engasgado como
se um melão te tivesse ficado atravessado na garganta.

- Eu não me engasguei, tropecei numa pedra! Porque é que deturpas todos os acontecimentos?!
Criança irritante! - respondeu frustrado, ao que ela sorria ainda mais.

- Bom, se me convidaste para um encontro, suponho que me vás levar a uma bela estalagem.
Quando cheguei à cidade, passei por uma que emanava um cheiro a carne assada de
fazer água na boca.

- Não te tratas mal, estou a ver - disse-lhe, com os olhos a sorrir. - Que seja,
criança, que seja.


 


...


 

- Como assim?! "Foi almoçar com uma bela ruiva?" - berrou a mulher, de seu nome Zarina.
A criada encolheu-se a um canto, pois conhecia as consequências do mau humor da
sua patroa. - Quem é ela? - perguntou agora num tom de voz que lhe era
habitual, demasiado suave, para poder augurar algo de bom.

- Dizem que não é da cidade Senhora. Ao que parece é a sobrinha daquela mulher que vive
isolada na floresta, na antiga casa do lenhador - respondeu a criada de formas
frágeis, fazendo lembrar o corpo de uma criança.

- Sim, já ouvi rumores da sua presença. Ao que consta é uma rapariga bastante bonita,
demasiado até, para o seu próprio bem.

- E há mais Senhora... a tal rapariga está hospedada na estalagem que a Senhora costuma
hospedar-se quando...

- Hum, interessante... Então deve ter sido lá que eles se conheceram. É tudo. Sai -
ordenou, e a criada assumiu, fazendo uma vénia ao sair. A mulher atirou com uma
jarra à parede, espalhando pelo quarto finos pedaços de cristal. É a primeira
vez que ouço que Solomon se mostrou com uma mulher na rua, pensou, num misto de
azedume e cólera. Se julgas que te vou deixar descansado enquanto te pavoneias
por aí com uma camponesa qualquer estás muito enganado, meu caro, muito enganado...
começava a magicar o que fazer enquanto recompunha o penteado perfeito.
Orgulhava-se muito do aspeto que a mãe natureza lhe dera e, pela mão do mesmo
tinha conseguido o casamento perfeito evitando que o seu pai, que havia perdido
toda a fortuna no jogo, caísse em desgraça às mãos de todos aqueles que anseiam
por este tipo de mexericos. O título e bens já os possuo... portanto se o meu
marido morrer num assalto, quem irá desconfiar de uma viúva que se viu sozinha
de repente, com um filho para criar... pensou, e sorriu para o enorme espelho
dourado, suspenso sobre um tocador de madeira enegrecida, mandada vir de
propósito de uma terra longínqua porque ela assim o quis ....


...

Deusa... se o
que ela me disse corresponde à verdade, estamos perante um enorme problema.
"Criaturas disformes, um misto de javalis e homens que cheiram a cão", foi como
ela descreveu aqueles que a atacaram e mataram, aquela fora a sua tia. E por
isso persegui-los-ei até ao inferno se for caso disso! Mas onde é que eu vou
encontrar tais criaturas?! Felizmente não é algo com me depare ao virar da
esquina... Recordo-me de ter ouvido muitos pescadores bêbados a discutir
possíveis avistamentos, mas lá está, sempre pensei tratar-se da consequência de
uma valente bebedeira... mas há agora os burburinhos que pairam na cidade como um
manto peganhento que se recusa a sair, pensava, estendido na sua cama. Embora
as pessoas tentem disfarçar, o medo está bem presente, debilmente disfarçado nas
suas vidinhas mundanas. Mas não faz sentido... estas criaturas extinguiram-se na
grande calamidade que varreu quase todos seres vivos da face da terra... como
poderão ter sobrevivido?! A não ser que... e não completou o raciocínio. De um
pulo, levantou-se e dirigiu-se à Cidade das Esmeraldas, pois era lá que morava
a única mulher ainda viva, daquela linhagem de Mulheres Bruxas...


...

- Foi um almoço agradável - declarou, enquanto escovava o pelo lustroso de Shadow. -
sabes, ele não me parece mau de todo. Não faças esse ar, refiro-me a uma
relação de amizade - e corou arreliada, só não sabia se por ter pensado em
Solomon se por ter ficado embaraçada por achar que Shadow se metia com ela. -
Estás perfeito amigo - disse sorridente e tirou um torrão de açúcar da sacola.
Enquanto o estendia ao cavalo, não reparou que o mesmo reagia de forma
inquieta, à presença que se lhes tinha juntado. A mulher correu as portas de
madeira do estábulo e olhou em redor enojada. Com um gesto altivo, agarrou nas
saias do seu vestido de seda enquanto escolhia um lugar onde as pudesse largar.

- Que sítio imundo - afirmou.

- Encontra-se num estábulo... porém nada mais há aqui do que palha e feno
espalhados pelo chão.

- Que horror, este lugar cheira terrivelmente - disse, com um pano de linho a
cobrir-lhe o nariz. A mulher de grandes olhos castanhos e cabelos negros,
olhou-a durante um bocado, como que a avaliá-la, até que falou por fim. - É
perfeitamente justificável que ele te tenha convidado para almoçar... Afinal, és
ainda uma jovem flor por colher e ele adora flores viçosas que ainda não tenham
sido colhidas...

- Não sei a que te referes, mas deves estar a confundir-me com outra pessoa - respondeu-lhe
Foebe nos olhos. Como é bela esta mulher, pensou.

- Eu nunca me engano rapariga. Falo de Solomon. Venho apenas aconselhar-te a ficares longe
dele...sabes, aquele homem tem  o terrível
hábito de destruir muitos corações jovens e inocentes.

- Oh, era dele que falavas... - disse Foebe, fazendo-se surpreendida, porém, a sua mensagem
era clara... desafiava a outra mulher. - Obrigada pela preocupação, mas da minha
vida cuido eu.

- Não és tão tola quanto aparentas não é camponesa?! Afasta-te dele - ordenou-lhe na sua voz
mais agradável, um tom demasiado suave...

- Nem você tem um ar tão ameaçador quanto julga - ripostou. Shadow, sentindo o desconforto
que pairava no ar, começou a bater com as patas e a relinchar. - Nobre dama,
como deve ter reparado o meu cavalo começa a ficar inquieto, provavelmente
devido à fragância demasiado doce do seu perfume, assim sendo, saia! -
respondeu-lhe, irónica de início e imperativa quando concluiu a frase.

- Por ventura, atreves-te a expulsar-me?!

- Que dom que a nobre dama tem para constatar o óbvio...

- Vais arrepender-te amargamente pela insolência camponesa! Não conheces a pessoa com
quem acabaste de iniciar uma guerra.

- Então depois mande-me uma carta com os seus dados. Agora adeus. - A mulher abandonou
o estábulo furiosa, quase deixando cair por terra o seu porte altivo e dessa vez,
não prestou a mínima atenção à imaculada seda do seu vestido...


29/05/2015

Mia Devlin


Que mulher horrorosa. Não no sentido exato do termo mas,
horrorosa mesmo assim. Será a namorada de Solomon?! Em todo o caso, nada tenho
a ver com isso, mas se me voltar a provocar novamente, corto-lhe as orelhas!
pensou chateada. Tinha acabado de escovar Shadow, mas nada a acalmava mais do
que correr com o seu cavalo e, por isso abandonou os estábulos no mesmo
momento. Trotou pelas ruas da cidade sem se preocupar com as frases iradas que
as pessoas lhe lançavam aquando da sua passagem. Estava demasiado colérica para
se preocupar com as boas maneiras... desde que não atropelasse ninguém, nada
seria merecedor da sua atenção. O cavalo demonstrava maior desenvoltura a subir
pela falésia escarpada do que a descê-la, e em escassos minutos achavam-se com a
cidade a seus pés. Foebe fungou, antes de voltar o cavalo na direção oposta
àquele mar de brilho cândido, iniciando um galope que duraria horas...

- Como assim
saiu a correr? - perguntou o homem de olhos negros e pele dourada, ao
estalajadeiro.

- Mestre Solomon,
estou a dizer-lhe o que o moço dos estábulos me contou. Que a menina se achava
a cuidar do seu garanhão negro quando uma dama, se lhe juntou. Após um tempo a
mulher mais velha saiu esbaforida e, passado um bocado, a menina Foebe
abandonou também ela o estábulo montada no seu cavalo.

- Uma dama?!
Que dama? Não sabia que Foebe conhecia alguém na cidade... pelo menos ela não me
disse nada a esse respeito - afirmava o homem, mais para si do que para o
outro.

- Mestre
Solomon, quem conhece a dama de que lhe falei é você mesmo, não a menina... -
afirmou o estalajadeiro num sopro. Ao ver o ar confuso que Solomon lhe lançava,
apressou-se a acrescentar, o suor a assomar-lhe à face por detestar meter-se na
vida privada dos hóspedes. - Refiro-me à nobre dama que o acompanha ao meu
estabelecimento... a de enormes olhos castanhos  e maças do rosto salientes - concluiu. Solomon
não queria acreditar no que acabara de ouvir... naquele momento, não era apenas o
estalajadeiro que tinha a face coberta de suor.

- Obrigada
pelo esclarecimento. E agradeço a sua descrição no que a este assunto respeita...

- Não tem
com o que se preocupar Mestre Solomon. A minha boca é um túmulo. - Solomon
assentiu e não demorou muito até montar a sua égua branca e dirigir-se para o
aglomerado de casas nobres que ladeavam o Palácio do Ministro. As pedras da
calçada mostravam-se cada vez mais polidas à medida que se aproximava mais
daquela parte da cidade, o que o obrigou a abrandar o ritmo rápido de Faisal
para evitar que a sua égua se magoasse. Tinha-a recebido como presente por
parte de uma das suas, conhecidas, ainda a égua mal se aguentava sobre as patas.
Passeava pelas cavalariças, pululantes dos mais raros animais, quando a viu e
se rendeu, perdidamente apaixonado por  ela. Costumava dizer em tom de graça que,
aquela seria a única "mulher" a quem entregaria o seu coração. Por ver o afeto
que ele demonstrou para com o animal, a mulher não tardou em oferecê-lo,
desejosa por cair nas suas boas graças, o que não lhe serviu de muito, tão
somente para ficar sem aquele belíssimo representante da espécie.  Raros eram os cavalos que se lhe assemelhavam
em beleza e graciosidade, pois Faisal agia como se, consciente da sua pura
linhagem, exibisse sempre um andar majestoso e altivo. Está tudo a correr mal...
primeiro não encontrei a malfadada bruxa que, segundo os vizinhos, desapareceu
há uns dias sem deixar rasto e agora isto! Que terá ido fazer Zarina, aos estábulos?
E como é que ela soube da existência de Foebe? Estas e outras questões dominavam-lhe
a mente quando recebeu a carta do rapazinho de cabelos em desalinho e com a
falta de um dente da frente, que servia na casa nobre de  Orphium. Abriu-a sem se preocupar
com a presença do rapazito, e assim continuou ao atirar o pedaço de papel amarfanhado,
de encontra a parede.

- Diz à tua
Mestra que a preciso de ver imediatamente. É de primeira importância o assunto
que tenho para falar-lhe.

- Senhor
Solomon, a Dama X, disse-me que, tudo quanto precisava de saber está nessa
carta. E disse para lhe dizer que está doente.

- Com que
então pediu que mentisses por ela?! Vou fazê-la arrepender-se amargamente -
vociferou. Ao ver o ar de medo que dominava a cara do pequeno, Solomon tirou um
caramelo do bolso e deu-lho. - Não te preocupes rapaz. Eu não lhe vou contar
que me disseste mais do que devias.

- De verdade
Mestre? Muito obrigado Senhor.

- Não tens
que agradecer. Deseja-lhe as minhas melhoras e, que assim que possível, me
envie uma carta. Já agora... De que males se queixa a tua Mestra?

- Da barriga
Senhor... e por deitar fora o que tem na barriga... - gritou-lhe o pequeno, que
desapareceu de vista ao virar uma esquina.

Foebe e
Shadow corriam  lado a lado, quando uma
figura, não maior do que uma criança surgiu no seu caminho. O cavalo elevou as
patas dianteiras no ar em sinal de desagrado pela travagem brusca que teve que
fazer, já Foebe sacudia as saias do seu vestido cinzento, cobertas de terra. Quando
se levantou, praguejou pelo rasgão no vestido mais do que pelo corte no joelho.

- A senhora
devia ter mais cuidado. Colocar-se assim diante de alguém, principalmente dum
cavalo a galope nunca foi a escolha mais acertada - disse-lhe irritada, fazendo
por não ser rude com a velha mulher. Esta não respondeu e Foebe observou-a
atentamente, analisando aquele rosto rugoso com a máxima atenção. Os olhos
vivos e atentos da mulher, contradiziam o seu aspeto frágil, principalmente a
pele, que parecia uma folha de papel, prestes a rasgar-se a qualquer momento.
Pelo que conseguiu perceber, a mulher fora mais alta na juventude e a altura de
agora era o resultado dos longos anos que trazia nas costas. Pode perceber que
as suas roupas, embora não de uma casa nobre da cidade, eram de bom corte, uma
camponesa abastada, pensou. Porém foi a imagem de uma lua cheia, cravada na pedra
que trazia ao pescoço que lhe captou a atenção. Tentou lembrar-se de onde tinha
visto aquele símbolo, e de repente a carta deixada pela tia surgiu-lhe na mente
como um relâmpago.

- O que é
isso? - perguntou, apontando para o colar. - Peço desculpa pela indelicadeza,
mas preciso mesmo de saber que imagem é essa.

- Porquê? -
quis saber a mulher, a voz a fazer lembrar unhas que raspam numa parede de
tijolo.

- Porque já
o vi antes - respondeu - numa carta escrita pela minha tia.

- Não.
Primeiro engano. A carta foi-te deixada pela tua tia.

- Foi o que
eu disse...

- Não, tu
disseste escrita, porém, a carta foi-te deixada pela tua tia - esclareceu-a com
o ar de quem explicava que a chuva molha. Ao perceber o ar confuso da rapariga
acrescentou por fim: - Criança, a carta foi escrita por outra pessoa... Por tua
mãe, ligada pelo sangue à mulher a quem chamaste tia.

 

30/05/2015

Mia Devlin

Que o sol me
queime! O que é que aquela louca andou a inventar?! Que queria ela da
rapariga?! Assim que melhorar vai ter muitas respostas a dar-me! Pensava
Solomon, contrariado por regressar a Alexandria sem qualquer explicação por
parte da mulher. No caminho passou propositadamente pela estalagem, mas Foebe
ainda não tinha regressado... como não estava certo de a querer enfrentar para já,
decidiu não se deter ali por muito mais tempo... 
Tentava convencer-se que nada mais sentia por ela, para além de carinho
e preocupação, como se de uma irmã mais nova se tratasse, e, que por isso
mesmo, a preocupação pelo que Zarina poderia ter-lhe dito justificava
plenamente  a ansia que sentia. É a irmã
que eu nunca tive, argumentava para si próprio enquanto uma voz trocista, vinda
do interior da sua mente, lhe causava arrepios de todas as vezes que dava o ar
de sua graça, com frases que o faziam duvidar da sua sanidade mental. Deusa,
cuida para que eu não me deixe apanhar por aqueles olhos, imploro-te... Ia já ano
fundo da rua, a rogar este e outros pedidos, quando a sua égua, sem motivo
aparente, começou a relinchar e a sacudir violentamente a cabeça, dando mostras
de um enorme nervosismo. Solomon tentava acalmar o animal, mas em vão... era
possível sentir a existência de algo muito perigoso que se achava por perto e,
os puxões nas rédeas não bastavam para sossegar a égua. Quando um uivo
mortífero, cortante como a mais afiada lâmina, encheu o ar, Faisal ergueu-se nos
quartos traseiros, fazendo-o cair com as costas no chão. O mundo à sua volta
ficou negro por momentos, e podia jurar que tinha fraturado um qualquer osso, porém,
para além das dores e confusão, conseguia discernir na perfeição as vozes e
gritos de pavor que o rodeavam. As pessoas passavam por ele sem se importarem
se o pisavam ou não, e foi por um tris que, as patas de um cavalo que puxava
uma carroça carregada de legumes, não o reduzira a nada. A cambalear,
encostou-se à parede mais próxima, tentando perceber no meio de toda aquela
confusão o que se estava a passar e foi nesse momento que os viu... Dois cães
enormes, com o pelo coberto de sangue, achavam-se no telhado da estalagem e
perscrutavam as ruas em redor. Solomon sentiu-se petrificado pelo medo... tudo o
que sempre se negara a acreditar desde criança, aparecia-lhe diante dos seus
olhos... os Cães de Cinza existiam... os batedoras das orlas de Carmandon, o Rei
Negro. Segundo a lenda, estas bestas eram o resultado da união do cão e do
homem, que, tendo este último oferecido a sua alma às trevas, ficara reduzido a
uma besta, cujo único propósito de vida é servir o seu amo, isso e matar... A única
parte humana que lhes era permitido preservar, dizia respeito à capacidade de
discernimento, fulcral quando lhes eram atribuídas missões como aquela. Dos
cães herdavam tudo o resto... a força, a resistência, a velocidade, garras
possantes e dentes afiados, o cocktail perfeito que fazia deles uma arma letal
perfeita e praticamente invencível. As feras eram enormes, o pelo negro, áspero
e hirsuto. Fisicamente, assemelhavam-se muito a cães de montanha gigantes, cuja
lombar formava uma corcunda junto das omoplatas, porém, o que mais confusão
fazia, era o olhar de um homem cravado naqueles olhos de cão, um olhar desprovido
da sua humanidade... Tinha estacado encostado à parede, a observá-los, sem se
atrever a mexer um músculo até então, momento em que o seu olhar se cruzou com
um outro... Um dos cães tinha detetado o seu cheiro e, instintivamente Solomon
soube que teria que desaparecer dali se queria continuar a viver. Iniciou uma
corrida desenfreada rumo à parte baixa da cidade, Alexandria, pois esperava que
o cheiro que pairava naquela zona pobre, fosse o suficiente para despistar os
cães. Mas, para isso tinha que lá chegar e ainda se achava bastante longe, para
além de que seguia a pé e magoado. Sabia que as suas hipóteses eram
praticamente nulas, mas correu o mais que as suas pernas permitiram, derrubando
vasos, bancos e tudo quanto se atravessasse no seu caminho. As ruas estavam
agora praticamente desertas, pois muitas das pessoas haviam-se refugiado nas
suas casas, esperando assim manter-se a salvo daqueles assassinos implacáveis.
Bateu em muitas portas gritando por ajuda, mas nenhuma se lhe abriu e, ouvia os
cães que seguiam no seu encalço, cada vez mais perto. Parou abruptamente, com a
consciência que fugir não seria opção e decidiu-se a enfrentar as bestas, numa
morte quase certa. - Prefiro enfrentá-los a fugir como um cobarde -, vociferou
entre dentes. Tinha na mão e a servir de arma, a perna de um banco que tinha
partido e, preparava-se para testar a sua resistência quando um dos cães
aterrou junto dele seguido do segundo. Eram muito maiores do que tinha imaginado
e muito mais aterradores... tresandavam a cão molhado misturado com suor humano,
um odor repugnante que teria feito Solomon levar a mão ao nariz, não fosse o
fato de se achar a poucos momentos de ser comido vivo. O animal que aterrou
primeiro, não se deteve por muito mais tempo e, num movimento limpo, recuou
para ganhar impulso quando nesse momento, uma seta de madeira rosa, atingiu-o
bem no centro do crânio. O cão tombou no mesmo instante e não tinham passado
mais do que breves segundos, já o outro estava junto dele, retirando a seta com
os dentes, partindo-a em muitos pequenos pedaços. Solomon não queria acreditar
no que acabara de presenciar... a besta que levara com a seta, achava-se de novo
sobre as patas.

- Estas criaturas
são difíceis de abater... Vai para trás de mim se queres ter alguma hipótese de
sobreviver - indicou-lhe um homem de porte elevado e armadura prateada. Pelas
insígnias que usava, Solomon apercebeu-se que estava diante do Capitão da
Guarda Ministerial, o cargo mais elevado que um oficial podia almejar... o mais
curioso, é que o homem não teria ultrapassado a barreira dos trinta anos, não
havia muito tempo.

- Julgas que
os consegues enfrentar isto sozinho?

- Os meus
homens acham-se prontos atrás daquelas casas e apenas aguardam um indicação
minha.

- Serve de
muito! um bando de soldados, escondidos atrás de pedra.

- Como te
atreves a fazer tal insinuação?! - gritou-lhe o 
capitão, a raiva bem visível mesmo por detrás da viseira do seu
brilhante capacete.- Tem cuidado com a língua saloio, ou depois disto,
certificar-me-ei que ta arrancam da boca. Agora vai - ordenou, empurrando-o
para trás de si. Este gesto, foi quanto bastou para baixar a guarda e permitir
que um dos cães avançasse, derrubando-o sem o menor esforço. O animal tentava
chegar ao pescoço do soldado, protegido pela armadura, mas a mesma ameaçava
ceder a qualquer momento, devido à força que aquelas bestas possuíam. Um golpe
e, o cão foi atirado para longe, ganindo e dobrado sobre o próprio corpo.
Solomon tinha-lhe espetado o pedaço de madeira no lombo e empunhava agora a
espada do soldado, avançando para o outro oponente que ainda estava de pé.
Elegantemente, como se a espada fosse parte integrante do seu corpo, girou
sobre si mesmo e, num só gesto fez a cabeça do animal rolar pelo chão de pedras
polidas. O outro, que já se achava novamente de pé, bateu em retirada e tudo
havia terminado, tão repentinamente que, não fosse o corpo morto que ali se
achava no chão, podia jurar-se que nada de mal tinha acontecido. Solomon
deixou-se cair, as mãos sobre os joelhos e a arfar, em movimentos cadenciados, enquanto
recuperava o domínio sobre si mesmo.

- Estou em
dívida para contigo... salvaste-me a vida - agradeceu o oficial e acrescentou: -
Onde é que aprendeste a manejar assim uma espada?

- Não
aprendi... e não me deves nada. Considera-nos quites - respondeu-lhe. - A
estalagem! Temos que ir! - e correu em direção ao "Martelo de Ferro". Quando
chegou, a porta estava escancarada e no interior a imagem da devastação
demonstrava a batalha que ali tinha ocorrido. Uma batalha que, mesmo ainda não
iniciada anunciava aqueles que sairiam vitoriosos... Mesas partidas e talheres
espalhados pelo chão cobriam o soalho arduamente polido, as pinturas, bem como
os candeeiros que preenchiam a sala comum, ou estavam em completo desalinho ou
achavam-se também eles no chão, mas o pior de tudo achava-se em suspenso, pairando
no ar como uma neblina peçonhenta... o cheiro putrefato da morte. O corpo do
estalajadeiro jazia caído no balcão e, quando Solomon se chegou perto do homem,
percebeu que a vida já o havia abandonado. Avançou por entre estantes caídas e
vidros partidos até à cozinha, na esperança de que ali houvesse quem tivesse
conseguido fugir àqueles demónios, contudo, o cenário naquele espaço era ainda
mais aterrador do que no anterior. As paredes imaculadas estavam cobertas por
salpicos de cor de um vermelho vivo e, os corpos das mulheres que ali serviam,
espalhados pela divisão. Sentindo a agonia prestes a irromper, saiu dali,
tentando afastar da mente, a recordação dos rostos familiares... avançou escadas
acima, em direção aos quartos e ali, nada dava mostras da calamidade que
acontecera no piso inferior... as tapeçarias pregadas ao longo das paredes,
achavam-se perfeitamente alinhadas e apenas o tapete comprido de cores
garridas, que acompanhava todo o corredor duma ponta à outra, estava
amarfanhado em algumas partes. Somente uma porta demonstrava que algo de errado
se tinha passado... aquela que se localizava na ponta oposta à sala de banhos...

02/06/2015

Mia Devlin


A porta
achava-se escancarada, e Solomon teve que fazer bastante força até conseguir
entrar dentro do quarto, pois quem a arrombou, fê-lo para que lhe fosse
possível passar-lhe por cima, dificultando assim a passagem a quem o quisesse
fazer da maneira natural. O cheiro que ali se fazia sentir era angustiante, e
se na rua tinha o vento para afastar o fedor, ali, dentro de quatro paredes, a
história era outra, assim sendo, não teve outra hipótese que não a de rasgar a
camisa e cobrir o rosto. O homem de olhos negros, avançou às apalpadelas e, por
pouco não esbarrou na mesinha de cabeceira deixada no meio do quarto... com o pé,
conseguiu perceber que, assim como esta, havias vários outros objetos que
também se achavam fora do seu devido lugar e, por isso mesmo, viu-se obrigado a
avançar muito lentamente até à janela. Abriu as pesadas portadas de madeira e
prendeu-as à parede, para que a luz inundasse o espaço e desse modo lhe
permitisse avaliar o estado da divisão. Aguardou ainda um momento, até os seus
olhos se habituarem à claridade súbita e só depois disso começou a perscrutar o
quarto, para tentar perceber o que haviam feito e o que haviam levado, na
esperança de poder descobrir o que tinham ido ali procurar... A agonia provocada
pelo calor e pelo fedor, dera lugar à irritação e amaldiçoava os portadores
daquele terrível cheiro a cão molhado, que impregnava toda a divisão. Estava
muito quente dentro do quarto e, o fato de ter um pano a tapar-lhe o rosto
ainda o deixava mais mal disposto, pelo que se decidiu  a atirá-lo para cima da cama.  O que ele viu nesse momento fez-lhe gelar o
sangue... sobre a cama, uma carta aberta, tinha sido escrita com tinta de um
vermelho demasiado vivo para ser tinta de flores e em algumas letras, o
luxuriante liquido tinha escorrido... pegou-lhe com relutância, evitando tocar
nas partes babadas e, no mesmo instante em que a começou a ler, deixou-a cair e
afastou-se, o coração a bater desenfreadamente... Que bruxaria é esta?!
Recordou-se de ter pensado... confuso, sem saber se o que acabara de presenciar
era fruto da sua imaginação ou se era mesmo real, acabou por pegar novamente na
carta e novamente, cada palavra lida era gritada, num misto de dor e desespero.
Era como se pudesse ouvir e sentir a dor da pessoa cujo sangue tinha servido
para escrever o texto, cada corte, cada contato da lamina fria contra a pele
nua... negou-se  a que o medo vencesse e,
após as primeiras linhas deixou de ouvir os gritos... o anúncio que aquela
mensagem continha, era cem vezes pior que os gritos daquela pobre alma...

Sabrina,

Por certo
sempre te questionaste sobre quem são os teus pais, onde estão e,
principalmente, quem és tu... Perdoa-me mas, se não os tens presentes, temo que a
culpa seja minha. Contudo, minha cara Princesa, cabe-me informar-te que, de
tudo fizeram para te manterem longe de mim e, até ao seu último sopro de vida,
a tua localização manteve-se uma incógnita para mim... devo confessar que não
esperava que o conseguissem... Porém, como podes constatar, de nada lhes serviu,
pois descobri-te por fim; mas também, morreriam de qualquer maneira, portanto...
Espero que perdoes os meus métodos, mas é-me às vezes difícil controlar os meus
animais e tu, embora jovem, deves estar consciente do quão difícil é encontrar
bons sabujos. Não me alongarei mais em conversas minha querida. Esperarei por
ti, nas Montanhas da Perdição até a estação findar, nem um dia a mais. Não te
demores... eu não permitirei atrasos, nem mesmo à princesa herdeira. Suponho que,
não será demais lembrar-te que, caso não compareças à minha chamada,
eliminarei, um por um, todos aqueles que conheces, com quem te cruzaste, que
habitam o mesmo mundo que tu e por aí em diante, e começarei pelo teu mais
recente amigo, portanto, não te atrevas a falhar-me.  Como podes constatar, mantenho-me muito bem
informado e saberei sempre como e onde te escondes minha querida. Ah, que
indelicadeza... quase me esquecia... espero sinceramente que possuas, pelo menos
metade da beleza, daquela que te trouxe a este mundo.

Atenciosamente,

Carmandor

Solomon
releu a carta mais duas vezes, agora, como se o desespero nas palavras fosse
uma ilusão do passado. Tudo naquela carta era surreal, começando pela
confirmação da existência de Carmandor ao interesse deste em Foebe... Só podia
ser uma confusão de identidades, afinal ele chamou-a de Sabrina, pensava,
enquanto tentava encontrar algo de real, verdadeiro a que se agarrar... porém,
não acreditava que o único homem à face da Terra, capaz de manipular a magia de
modo a transformar tudo o que era luz, em escuridão, se enganasse no que
respeita à identidade de alguém... e se dúvidas houvesse no que respeita à
autenticidade da carta, ficariam dissipadas no preciso momento em alguém inicia
a sua leitura... tem um jeito muito macabro de a assinar, concluiu.  Começou a dar voltas no quarto, indiferente ao
cheiro, ao sangue, ao caos que o rodeava. Em mente, apenas tinha Foebe e
recapitulava, tudo o quanto sabia sobre aquele homem. Era costume as mães
usarem aquele nome para incutir medo nos mais pequenos, mas para além disso ninguém
mais ousava pronunciar a palavra maldita, com receio de mau agouro. Uma vez ou
outra, um jogral colocava-o nas suas histórias ou numa canção, mas depois
disso, de novo o silêncio. Segundo a lenda, Carmondor era o soberano único de
todos os reinos da Terra, cargo que reivindicou depois de ter feito desaparecer
a Deusa e o Deus, seu consorte. Há Muitas Eras atrás, os dois reinavam
uniformemente e em harmonia, até o Homem começar gradualmente a esquecer os deuses
e sua magia e, consequentemente, o respeito pelo mundo e todas as criaturas que
nele habitam. Foi um período negro na história do Homem e não porque não
prosperasse, apenas porque o fazia cada vez mais à luz da cobiça, afastando-se gradualmente
da imagem dos seus criadores. E foi nesse período de esquecimento que surgiu
Carmandor e unificou todos os reinos, ludibriando a Deusa e o Deus, ao fazê-los
acreditar que traria de novo o culto perdido a todas as deidades, não
descurando nenhuma. O pacto foi celebrado e a partir daquele dia, a Deusa e o Deus
ensinaram-lhe tudo quanto sabiam, com a ressalva de que, caso falhasse ou fosse
usasse os seus dons para qualquer outro fim que não o bem, a sua alma seria
consumida e entregue às Trevas, sem qualquer hipótese de salvação. Ambos
julgaram que essa consequência, temível para a maior parte das pessoas, fosse
suficiente para manter o mal afastado... Porém, quando se viu detentor de toda o
saber que os dois possuíam, fê-los desaparecer como se nunca tivessem existido,
não restando do casal, nada mais do que o saber que deixaram e das memórias que
teimavam em não morrer por entre os muito poucos devotos. A partir dessa Era,
foi proibido a todas as pessoas que praticassem magia. Quem o fizesse, incorria
em infração grave e tinha como único destino, a morte. Quem mais sofreu, foram
as mulheres que nunca deixaram esquecer a imagem da Deusa. Muitas delas
morreram queimadas, outras tantas pereceram perante a tortura de que eram alvo
e, aos poucos as filhas e netas das que eram levadas, seguiram o caminho do
silêncio e deste ao esquecimento. Em alguns contos diz-se que foram feitos prisioneiros,
noutros que Carmandor era superior em magia e os tinha aniquilado e havia quem
defendesse nas suas histórias que estavam apenas adormecidos, aguardando apenas
por aquele que os libertaria do sono eterno... porém, independentemente do fim
que tiveram estas duas deidades, o fim dos contos, das histórias e canções era
comum... o Rei Negro, não havia contado com a força e lealdade de todos os outros
deuses que, revoltados com o que havia feito aos seus Primeiros, acurralaram-no
nas Montanhas da Perdição, situadas numa terra para além do mar, um buraco, bem
no centro da Terra, impedindo-o de sair e assim, espalhar a sua semente maldita
pela Terra. Nesta batalha de luz e sombra, todos os outros deuses ficaram
reduzidos aos seus elementos, Terra, Fogo, Ar, Água e Espirito, despojados de
matéria física, mas aguardando pelo dia em que uma mulher com os cabelos de
fogo e que caminhava com os cavalos, os libertaria. Depois de passar tudo isto
em memória um calafrio percorreu-lhe o corpo... aquele monstro era real e queria
a sua rapariga de olhos verdes...


03/06/2015

Mia Devlin


A cidade
achava-se impregnada por aquele cheiro nauseabundo... era como se este, se
tivesse entranhado nas fissuras existentes nas casas, madeira, calçada, nos
tecidos das janelas ou nas vestes das pessoas... aquele fedor estava em toda a
parte, como que a troçar de todos quanto o quisessem esquecer. Shadow
relinchava ansioso e inquieto por reconhecer o cheiro de tão temíveis
predadores e, Foebe não estava melhor. Olhava em volta na esperança de
conseguir perguntar a alguém se havia visto alguma coisa, mas a ausência de
pessoas na rua era quanto bastava para responder à sua questão... não se via viva
alma, mesmo a mais de cem passos de distância, tudo quanto ali se encontrava
era o cheiro nauseabundo, nada mais, nem gatos 
rechonchudos empoleirados nas janelas, ou cães deitados à sombra... nem
mesmo um único piar, perdido numa árvore... As portadas das janelas, bem como
todas as portas das casas, lojas e quaisquer outros estabelecimentos, achavam-se
fechadas por dentro. A cidade que, quando a deixara para trás, transbordava de
vida, estava agora deserta, como se todas as pessoas tivessem desaparecido no
ar. Porém, e apesar do cheiro a morte que enchia o ar, sentia que nada havia a
temer, que o perigo já havia desaparecido... não sabia como, sabia-o apenas. Contudo,
um formigueiro na base da nuca indicava-lhe que alguém a observava, alguém como
um... espectro. Mexeu os ombros na esperança de fazer desaparecer aquela sensação
e, por momentos conseguiu-o... perdida nos seus pensamentos, não se apercebeu que
Shadow a encaminhara direto para a estalagem... a imagem com que se deparou
trouxe em catadupa todas as memórias da terrível tarde em que havia perdido a
sua tia. Como a alguém a quem é retirada a vontade própria, desmontou automaticamente
e dirigiu-se à estalagem, pé ante pé, como se dispusesse de todo o tempo no
mundo... A verdade é que se sentia como se pequenos fios a comandassem, conduzindo-a
para um mundo de morte pelo sangue, onde os rostos de pessoas conhecidas pairavam
ao acaso, os corpos que, aparentando não possuir ossos, estavam espalhados como
um tornado que, ao passar, destrói e atira bonecos de palha...  um abraço com cheiro de areia, recuperou-a do
transe em que se encontrava... e chorou desesperadamente, uma vez mais.

Ele aguardou
pacientemente que ela recuperasse daquele turbilhão de emoções, até se atrever
a indagar sobre os motivos daquele ataque, daquela carta, das perseguições de
que ela era alvo.  Sabia que não a
poderia pressionar muito... não que ela corresse o risco de quebrar, apenas
porque tinha consciência que, seria a ele que isso poderia acontecer, caso
voltasse a vê-la sofrer daquela maneira. Estavam sentados junto à fonte onde se
tinham encontrado há dois dias, porém, parecia-lhes ter sido há uma eternidade...
a água que jorrava límpida, era um contraste cruel perante o mar de sangue a
que haviam fugido... Tanta coisa tinha acontecido desde aquele encontro perfeito que,
quase o fizera duvidar da sua existência... com o olhar perdido em pensamentos, afagava-lhe
o cabelo enquanto fixava o sol, que se punha glorioso no horizonte. As pessoas,
apesar de se terem já passado algumas horas, ainda não tinham regressado às
ruas, que assim permaneciam ainda vazias, à exceção das fileiras de guardas que
percorriam as ruas, eles próprios e as respetivas montadas. A égua branca que
entretanto regressara à estalagem, e o garanhão negro de Foebe, criavam um
magnífico contraste, branco contra preto, contra novo branco das casas... a luz
que envolve as trevas, a escuridão que aconchega a luz, um jogo tão antigo
quanto o próprio tempo. 

- Não podiam
ser mais diferentes... parecemos nós - murmurou-lhe ao ouvido.

- Como? -
perguntou ela, a voz sumida devido ao cansaço. Ele apontou com a cabeça em
direção aos animais, para responder de seguida.

- Eles...
Shadow e Faisal. - Ela levantou-se do seu colo, olhou para as montadas e
sorriu.

- São como o
dia e a noite. A luz que é parte integrante da escuridão... o dia e a noite, o
preto e o branco... - deixou a frase em suspenso, quando os seus olhos se
cruzaram com os dele. Solomon fitava-a intensamente como se a fosse engolir num
só gesto.

- Enquanto
eu viver, nada te acontecerá. Prometo-te.

- Eu sei... -
foi tudo quanto conseguiu responder... detiveram-se a olhar um para o outro,
segundos que pareceram horas, até ele se decidir a mostrar-lhe a carta.
Desejava ardentemente beijá-la, possui-la, tê-la junto a si num qualquer lugar
seguro mas sabia que não tinha o direito de o fazer. O passado iria
persegui-los e alcança-los mesmo antes de chegarem a esse lugar idílico, onde
só ambos existiam... afastou arduamente o desejo e entregou-lhe a carta, como se
aqueles pensamentos nunca tivessem existido. A reação de Foebe ao ler as
primeiras palavras, fora a mesma que ele tivera... a custo, reprimiu o desejo de
a voltar a abraçar, no momento em que reparou como as mãos lhe  tremiam.

- Não
percebo Solomon... Eu... eu não sou ninguém. Sou órfã, fui criada por a minha tia,
numa antiga casa de um lenhador... e ouço vozes...

- Foebe é
mais do que claro que eles andam à tua procura e, voltarão caso não compareças
no local e data previstos nessa maldita carta! Eu julgava que Carmandor
pertencia ao mundo das fábulas e, e agora aqueles cães malcheirosos quase me
mataram! Tem que existir uma resposta algures. Alguém tem que saber de alguma
coisa! Mas até nisso temos azar pois a única pessoa que nos podia ajudar, fez o
favor de desaparecer. Que o fogo a consuma!

- Tento na
língua! Não é o fato de seres mais velho que me vai impedir de te puxar as
orelhas quando estás à beira de um ataque de histerismo... fizeste-me lembrar de
uma mulher, enorme com quem uma vez me cruzei...

- Tu sabes
que estamos a discutir a tua vida, ou morte, depende. É normal que esteja
ligeiramente alterado - respondeu-lhe, dando ares de quem ficou extremamente
ofendido com o comentário.

- Sei. Assim
como sei que, não é por gritares feito um pé descalço que, vais resolver alguma
coisa - respondeu-lhe. - Mas quem é essa pessoa de quem falas?

- Uma bruxa,
a última das Mulheres... que habitava umas ruas abaixo da estalagem.

- Pareceu-me
ter visto uma bruxa ou feiticeira... mas depois acordei e tudo não passou de um
sonho. Para além de ouvir vozes agora também tenho, visões, alucinações ou o
que quer que se tenha passado...

- Como
assim?! Como era essa mulher que viste?

- Não foi
real. Ia a correr com Shadow, quando de repente, uma senhora com uma idade já
muito avançada surgiu diante de nós. Para não a magoar, recordo-me de ter
tentado desviar-me e acabei por cair. Mas não sei o que foi realidade ou sonho,
pois quando acordei era como se a senhora nunca ali tivesse estado... e tinha um
fio com a mesma imagem que estava na carta deixada pela minha tia e... e falou
sem sentido... afirmou que a carta foi deixada pela minha mãe, não pela minha tia
e...

- Uma lua?

- O quê?

- O fio! Se
o fio era uma lua cheia gravada na pedra.

- Como é que
sabes?

- Porque
essa mulher, é a bruxa de quem te falei...


06/06/2015

Mia Devlin


- Solomon,
foi um sonho... Como é que pode ser a mesma mulher?

- Pode, se
for uma bruxa... Vamos. Dentro em breve será noite e eu não quero arriscar a
andar na rua... não depois do que aconteceu.

- E vou para
onde?! A estalagem...

- Vens para
minha casa. E escusas de dizer algo em protesto rapariga. - Pela primeira vez
ela não sentiu necessidade de contestar o seu tom autoritário... afinal, não lhe
agradava minimamente passar a noite sozinha, pelo menos não por enquanto. À
medida que avançavam rumo ao centro de Alexandria, as casas perdiam o brilho e
esplendor que caracterizava as habitações da Cidade das Esmeraldas. Aqui, as
paredes já não eram brancas, mas cinzentas, um tom que parece mais um branco
sujo que um cinza claro e, em algumas das casas as portadas caídas e a falta de
telhas, demonstravam claramente que quem ali vivia, não tinha as mesmas posses
que as pessoas que viviam na outra parte da cidade. Era um lugar triste, sem
luz nem brilho, tão diferente da realidade que havia conhecido em Esmeralda... as
pessoas trajavam roupas simples, muitas delas rasgadas e com nódoas. A maior
parte caminhava descalça e aqueles que não o faziam, tiveram que abdicar de um
ou outro conforto, como Solomon lhe explicara, um chapéu, um avental ou
qualquer outra peça. A maior parte deles, trabalhava no porto e não via
necessidade de, por isso, usar sapatos, portanto os que os usavam deviam ser
aqueles que trabalhavam como empregados nos armazéns, ou nas estrebarias das
casas nobres. Mas pelo que Foebe pudera perceber, estas últimas possuíam
criados internos, evitando ao máximo ter de contratar pessoas que viviam em
Alexandria, como se estas pudessem contaminar de algum modo os seus senhores.
Reparou também que, todos ali caminhavam de cabeça baixa, em silêncio, e que
não lhes prestavam mais do que um olhar, se é que sequer o faziam... nem mesmo as
crianças que, como é característico da sua idade, não param quietas, ali, juntavam-se
num grupo pequeno para se sentarem no chão, sem brincar com nada, estavam
apenas ali sentadas...

- Porque é
que as pessoas aqui são tão tristes? Parece que mudei de reino...

- As pessoas
aqui passam por muitas dificuldades... a maior parte mal consegue colocar mais do
peixe e legumes que os que vivem na outra parte não consideram bons, na sua
mesa... o nível de pobreza aqui é muito elevado. Até os mais pequenos evitam
brincar... não é agradável se tiveres a barriga vazia - respondeu-lhe
sombriamente.

- Mas
porquê? Quero dizer, não faz sentido... se faz tudo parte da mesma nação, ou
reino ou qualquer outro nome que  lhe
atribuam, porque é que aqui as pessoas passam fome? Há tanto luxo na outra
zona...

- Sempre
assim foi e sempre assim será. Pelo menos enquanto se mantiver o modo de
governar a cidade. É assim, pura e simplesmente. Há pessoas pobres e há pessoas
ricas.

- É claro
que há pessoas com posses diferentes mas, isso não implica que tenham que
passar fome ou viver em ruas imundas e casas com buracos no telhado. Não é
justo...

- Chegámos -
anunciou. Pararam diante de uma casa em tons de cinza perlado, como se o seu
proprietário não quisesse destoar das demais habitações, mas também não quisesse
abdicar de usufruir do conforto e beleza que a sua situação económica lhe
confere. A fachada da casa era bastante elegante, com enormes janelas no piso superior,
e pequenas varandas em cada uma delas. No centro, bem por cima da porta de
entrada, gravada na pedra, uma flor de Camélia, era a única flor que se via nas
redondezas. Deram a volta ao edifício que se achava sozinho, onde só existiam
habitações coladas umas às outras, sendo por vezes difícil distinguir onde
começava uma  e terminava a outra, para
deixar os cavalos numa estrutura de madeira, edificada muito recentemente, mas
com todo o conforto possível para os animais que a viessem a ocupar.
Desmontaram em silêncio e assim se mantiveram enquanto acomodavam as suas
montadas... Foebe sentia-se nervosa pois nunca tinha estado sozinha com um homem,
se bem que com ele, para além de já ter estado sozinha, esteva também nua.
Aquela lembrança fez-lhe corar a face, e tossiu para tentar afastar o embaraço.
Ele não deu mostras de se ter apercebido e fez-lhe sinal para que o seguisse,
atitude que a deixou um pouco menos nervosa... Mas apenas um pouco, pois metade
dela sentia-se disposta a dar meia volta e correr na direção oposta... porém, a
parte vencedora da sua luta interior, de tudo fez para que ele não se
apercebesse do seu estado de espirito e assim, caminhou tão dignamente quanto
lhe foi possível. Ao entrar na casa, apercebeu-se de imediato de um aroma que
pairava no ar, um leve cheiro a canela e mais qualquer coisa que ela não
conseguiu identificar. Deixou-se ficar estática junto ao canto que ele lhe
indicara, enquanto acendia os candeeiros de velas, um por um. À medida que a
luz enchia a divisão, Foebe apercebeu-se como esta estava perfeitamente
arrumada, sem um único objeto que destoasse ou um granulo de pó, que
perturbasse o imaculado lugar. As pesadas cortinas de tom de ameixa, estavam
corridas e assim permaneceram... junto a uma das janelas, uma escrevaninha de madeira
negra habilmente talhada, continha vários livros empilhados, umas quantas
folhas, também elas metodicamente dispostas junto a um tinteiro de prata e,
dentro deste, uma pena preta e brilhante a condizer.  Nas paredes, estantes com livros das mais
variadas capas e tamanhos conferiam ao espaço um carater sóbrio e tranquilo. No
chão, um tapete cinzento-escuro, sem quaisquer desenhos ou adornos, conferia
uma sensação de conforto ao lugar. Na parede oposta à janela, e junto da
lareira, uma magnífica poltrona de costas  altas e cor purpura, estava ladeada por duas
outras mais pequenas da mesma cor e, no meio de cada uma delas, mesinhas de
apoio numa madeira mais clara, permitiam que, para além dos candeeiros, livros
ou quaisquer outros objetos, ali pudessem ficar esquecidos por quem nelas se
enroscava a apreciar o fogo. Foebe olhava em redor espantada com a elegância
sóbria daquele espaço mas, foi o candeeiro de teto que mais lhe chamou a
atenção... uma peça de prata ornamentada com cristais que, à luz dourada das
velas brilhavam como diamantes.

- Gostas?
Fui eu quem o fez...

- Tu?? -
olhou para ele espantada, tentado perceber no seu rosto, qualquer indício de
que ele estava a meter-se com ela.

- Podes
tirar esse ar desconfiado se fazes favor?! Sou mais do que um rosto bonito -
afirmou, com o seu sorriso mais rasgado.

- A sério?!
Oh por favor para... mais um pouco a sentir tanto charme e ainda corto os pulsos.

- Sempre
simpática. Queres comer algo? Tenho uma sopa de galinha feita hoje de manhã.

- Certo.
Quem é ela?

- Ela quem?

- A mulher
que te limpa a casa e te prepara a comida.

- Não posso
ter sido eu? - perguntou-lhe, fazendo o ar mais inocente de que foi capaz. Ao
perceber que não iria, de todo, resultar, confessou-lhe. - Pronto... é a
Matildia, a senhora que cuidou de mim desde que era uma criança.

- E os teus
pais?

- A minha
mãe morreu ao pôr-me neste mundo e, o meu pai, não aguentando o desgosto, matou-se.
Fui... amparado, por Matildia até ter idade de me fazer à vida. Depois, ao longo
dos anos, fui construindo, ou remodelando, esta casa que pertencera aos meus
pais.

- Lamento
Solomon...

- Não
lamentes... as coisas são como são e, os deuses lá devem ter os seus motivos. -
Ele colocou uma mesa digna de um jantar real, com pratas e copos brilhantes,
guardanapos de pano, bordados com a mesma flor que, brilhava na fachada da casa...

- A flor de
Camélia, tem algum significado? - perguntou Foebe, já bastante descontraída, a
balançar na mão o copo de vinho tinto temperado com especiarias de odor forte.

- Foi a flor
que a minha mãe bordou em todas as peças que fez para mim... achei que, por não
deixar morrer essa flor, de algum modo ela continuasse viva dentro de mim -
confessou-lhe. Nunca ninguém tinha chegado tão perto de poder tocar as suas
maiores feridas... aquela rapariga tinha conseguido em dias, o que nunca ninguém
em anos, havia sequer chegado perto.

- Eu sabia...

- O que é
que sabias?

- Que tu és
muito mais do que aquilo que aparentas... - e reprimiu um bocejo.

- Anda. Vou
pôr-te na cama - chegou perto dela e pegou-lhe ao colo, as mãos da rapariga a
abraçar o seu pescoço, as dele a envolver-lhe a cintura e as pernas. - Que
quarto preferes, minha pequena rainha? -perguntou-lhe, mas ela já dormia
profundamente.

09/06/2015

Mia Devlin


Ela despertou
demoradamente, afundada por entre aquelas grandes almofadas de penas de ganso e,
lençóis de linho branco que, emanavam um ligeiro cheiro a alecrim... quando finalmente
se obrigou a sair da cama, para puxar as pesadas cortinas que impediam, por
completo, a luz de entrar, foi com surpresa que se apercebeu como o sol já ia
alto no céu. "Foi o raio do vinho"... pensou, grata pela única consequência ter
sido dormir demais. Pelo que ouvia a sua tia repetir vezes sem conta, os homens
costumavam perder a cabeça quando bebiam, " Ficam loucos como bezerros
desmamados", afirmava escandalizada e de olhos arregalados. Foebe sempre se
perguntou, por que experiencia traumatizante teria a sua tia passado para quase
lhe saltarem os olhos das órbitas, de todas as vezes que ela sugeria vinho para
acompanhar a refeição. Aquela lembrança fê-la sentir um aperto no peito... Não
teria a oportunidade de lhe dizer que estava enganada em relação ao vinho...  aquelas bestas haviam-lhe  tirado a pessoa que mais amava, deixando-a
completamente só. Colocou aquele pensamento de lado, como já se havia
acostumado a fazer desde que a tia partira. Fizera uma promessa a si mesma... Só
choraria novamente quando vingasse a mulher que, fora para ela, a sua mãe ... até
lá, ia aguentar, tinha que aguentar se queria ser bem sucedida. Decidida,
ergueu a cabeça e foi junto do espelho para ajeitar o cabelo e preparar-se para
mais um dia, porém, a imagem que o enorme espelho de moldura dourada lhe
devolveu, quase a fez cair para o lado... as suas faces, normalmente de tom
leitoso, desafiaram em cor, o vermelho do seu cabelo... "Ele... despiu-me. É desta
que lhe corto as orelhas! Mas antes e, já que aqui estou... porque não
aproveitar?". Posto isto, tirou a camisa de dormir, de corte e tecidos simples,
deixando-a cuidadosamente dobrada, no banco de madeira que se achava junto da enorme
tina de madeira. Pelo que se apercebeu, alguém tinha entrado sorrateiramente no
quarto enquanto dormia, não havia muito tempo, para garantir que teria todas as
comodidades quantas lhe pudessem oferecer, quando acordasse. A banheira chamava
por ela enquanto lançava no ar, ondas de vapor quentes que, fundindo-se umas
nas outras, executavam uma serpenteante dança rumo ao teto... O espaço para o
banho, achava-se separado da restante divisão, por um biombo de madeira ,
e ela não repararia nele, caso não tivesse sido deixado aberto, revelando a
tina cheia de água. " Se ele julga que o vou desculpar apenas porque me
preparou o banho está muito enganado. Bom, talvez lhe corte só uma orelha e não
as duas... atrevido. Mas agora... o banho... ". Ela deixou-se estar mergulhada na
água que de tão quente, lhe deixou a pele vermelha, enquanto se questionava
como é que ele tinha dinheiro para aquilo tudo... "É melhor não saber" e, pegou
no sabonete de alfazema, encerrando assim o assunto.

Quando
desceu, a mesa onde jantara na noite anterior, estava posta e repleta de
iguarias que lhe fizeram crescer, instantaneamente, água na boca. Havia frutas
e um cesto cheio de pão fresco, manteiga, queijo e presunto dispostos em
recipientes próprios, cada um, ladeado por um talher de prata reluzente. Um
bolo de cenoura, segundo lhe pareceu e um outro de chocolate, faziam as honras
no centro da mesa e um jarro com leite e, um outro com chá, encerravam o conjunto
de louça branca e elegante. Reparou que a toalha era outra e que alguém tinha
colhido flores do campo amarelas, para dar um toque de cor na farta mesa.

- A Matildia
não se poupou a esforços... um pequeno almoço digno de um ministro -
sussurrou-lhe ao ouvido, fazendo-a arrepiar até aos ossos. Ela voltou-se para
trás para o encarar e dar-lhe um valente ralhete por a ter despido mas, as
palavras ficaram presas quando ele lhe deu um afetuoso beijo na face. Passou
por Foebe satisfeito, aparentemente indiferente ao efeito que aquele gesto
causou na rapariga.

- Vais tomar
o pequeno-almoço aí? É capaz de não ser muito confortável - disse-lhe
divertido.

- Tu
desconcentras-me... - desabafou. Aquela confissão inesperada por parte dela, foi
tudo quanto precisou para avançar... deteve-se apenas um momento antes de falar, pesando
as consequências das suas palavras, a consciência que, a partir daquele
momento, tudo mudaria entre eles.

- Eu
quero-te como nunca quis nenhuma mulher até hoje. Fazes-me sentir vivo, como se
tudo na minha vida me tivesse conduzido até ao momento em que te conheci.
Desejo ter-te, tocar-te, percorrer-te o corpo com a boca até... fazes-me perder o
controlo Foebe. Conheço-te nem há meia dúzia de dias e a minha vida alterou-se
por completo... já nada faz sentido...  -
quando terminou estava junto dela, tão perto que podia sentir-lhe a
respiração... Os seus olhos negros procuravam desesperadamente os dela, em
busca de reciprocidade... - Diz-me que sentes o mesmo... por favor...

- Como
poderia não sentir... - não conclui a frase, por as suas palavras se perderem na
boca dele... o calor daquele beijo pediu algo mais, algo que ela não lhe pode dar
e, impediu-o de avançar mas, sem por isso o afastar de junto de si.

- Solomon
eu... eu sinto o mesmo que tu... mas... não estou preparada...

- Eu espero
pequena rainha... - e sorriu-lhe. Num gesto repentino, agarrou nela ao colo e
levou-a até à mesa. Pousou-a delicadamente no chão, como se ela se pudesse
partir, de tão delicada e puxou a cadeira para ela se sentar. Foebe, entrou na
brincadeira e, com uma vénia suave agradeceu, indicando-lhe que, depois dela,
ele se podia sentar. - Dormiste bem?

- Dormi, até
demais...

- Eu tive
que te tirar o vestido... tentei acordar-te mas... não te preocupes - apressou-se a
acrescentar quando encarou aqueles perscrutadores olhos verdes - fi-lo apenas
com uma vela acesa, mal dava para ver a ponta do meu próprio nariz.

- Tu já me
viste nua Solomon... armar-me agora em puritana, seria, no mínimo ridículo da
minha parte - e soltou uma enorme gargalhada ao lembrar-se daquele primeiro
encontro...

- Tu és
imprevisível e, essa é apenas uma das características que, tanto me perturba...
eu nunca sei o que esperar.

- Isso é uma
coisa boa certo? - perguntou-lhe, enquanto enfiava na boca uma enorme baga de
uva preta.

- Se é... - e
novamente, como um felino prestes a saltar impiedosamente sobre a sua presa, estava
junto dela, antes de esta poder sequer, pensar em fugir. Passou-lhe uma mão
pelo cabelo, para depois a segurar no queixo, fazendo com que se olhassem. -
Sabes que vou passar o resto da minha vida a beijar-te, não sabes?

- Espero bem
que cumpras essa promessa - respondeu-lhe, com a certeza que se ele não o
fizesse, deixaria nela uma ferida que nunca nada seria capaz de a fechar. -
Solomon... sabes que é um jogo perigoso, este que estamos a iniciar?

- Sei... assim
como sei que nunca na vida estive tão certo de algo... nem tão feliz. Para além
disso, agora já é um pouco tarde para voltar atrás - e beijou-a novamente. Um
beijo demorado, lento... um beijo que começou por ser um leve roçar de lábios, o
suficiente para a fazer arrepiar, para depois rumar pelo queijo e deter-se
junto à sua orelha direita... respirava aquele cheiro dela como se nada mais
existisse para ele, como uma droga que o consumiu por inteiro, desde a primeira
vez que a havia experimentado e, muito lentamente, regressou àquela boca de
lábios carnudos que ansiavam por mais.


11/06/2015

Mia Devlin


- És tudo
quanto eu sempre sonhei... e não me perguntes como o sei, sei-o apenas -
disse-lhe, quando regressou ao seu lugar. Olhava para ela e sorria... não
conseguia não sorrir. - Sinto-me um tolo... um miúdo que começa a descobrir os
doces momentos, que a vida tem para lhe proporcionar.

- Por mim,
podes continuar assim eternamente... mas, Solomon, não te esqueças que terei que
partir...

- Como é que
queres que me esqueça?! Quase fui morto por aqueles sacos de pulgas, é muito
complicado... esquecer... cabeça fora... - dizia, enquanto fazia caretas, e com a mão
simulava que alguém lhe cortava o pescoço. -E ara além disso, não vais sem mim
- afirmou, como se tivesse a discutir o preço de bananas, nada mais. Era
incrível a sua capacidade de agir descontraidamente em situações que, a outros
faria desmaiar.

- Tu leste a
mesma carta que eu, certo?!

- Foebe que
esperas que eu faça? Que te deixe partir, porque um lunático- e acrescentou,
quando ela o fulminou com o olhar- certo, um poderoso lunático, te chamou à sua
presença? Vamos encontrar uma solução... não sei bem qual, mas havemos de pensar
em alguma coisa, mas é certo que, sem mim, não vais a lado nenhum - concluiu.
Seguiu-se um momento em que ninguém disse nada, embrenhados nos seus próprios
pensamentos e planos. Solomon não pensara sequer permitir que Foebe fosse ao
encontro  de  Carmandor, e por seu turno, a rapariga de
olhos verdes, tencionava fugir durante a noite, pois não queria arriscar a vida
daquele homem de pele dourada... - Temos que encontrar a Bruxa. Ela é a única que
nos pode ajudar - disse-lhe, retomando o assunto anterior.

- Mas como?!
Solomon o momento mais próximo que travei com a magia, deu-se há mais de dez
anos atrás quando ouvia as histórias sobre Merlin, que a minha tia me contava
antes de eu ir dormir. Eu não sei invocar bruxas...

- Então e o
sonho? Achas que foi coincidência? É claro que não... talvez lhe possamos mandar
uma mensagem... talvez se... podes levar-me ao sítio onde a viste? - perguntou-lhe.
Ela acenou afirmativamente com a cabeça, sem ter oportunidade de dizer o que
fosse, pois ele já continuava: - Perfeito. E traz os teus pertences contigo.
Não voltaremos aqui...

- Qual é a
tua ideia? Eu... eu tenho as minhas coisas na estalagem...

- Eu pedi a
um amigo que as fosse buscar. Estão no quarto onde dormiste... tomei a liberdade
de te comprar uma capa para a viagem e a Matildia fez dois vestidos próprios
para montar...

- Posso
saber quando é que decidiste, por mim, o meu futuro?

- Desculpa,
não foi com essa intenção. Eu... nunca me preocupei com ninguém para além de mim
próprio e, é tudo novo para mim. Não quis ofender-te, apenas ser prático.

- Desta vez
passa. Mas não voltes a tomar nenhuma decisão sem me consultares. Esta foi a
primeira e, última vez - o tom de voz com que falou, deixou bem claro que não
ia admitir o contrário e assim, ele assentiu, num misto de orgulho pelo forte
carácter dela e irritação, pelo mesmo motivo. Continuaram o resto da refeição
em silêncio, mergulhados novamente nos seus pensamentos... Foebe passava
inconscientemente a mão pela ferida no joelho que, agora, não era quase nada
para além de uma linha de crosta fina, enquanto Solomon brincava com uma fatia
de pão, não se decidindo se a havia de comer se não, quando dois baques na
porta os trouxeram de novo à realidade.

Solomon
levantou-se para a ir abrir, enquanto Foebe permaneceu, de costas muito
direitas, expectante para saber quem era, "atendendo aos últimos
acontecimentos, acho que devia ir buscar um cutelo...", pensou, mas abandonou a
ideia, quando conseguiu perceber que a visita fazia surgir de quando em vez, uma
pequena cabeça ruiva, sempre que se tentava fazer ouvir perante Solomon, este
dando mostras de não estar muito de agradado com o que estava a ouvir.

-... Mas é que
nem pensar! Tu ficas!

- Mas Senhor
Solomon... eu servi-o desde o primeiro dia e quero ir consigo... - suplicava uma
voz, demasiado tenra ainda para passar por alguém, com mais do que dez anos de
idade. Foebe levantou-se para ir ver quem era o rapaz e o motivo da discussão. Aproximou-se
de Solomon e puxou-o de modo a conseguir ver o seu interlocutor.  Ao vê-la, o
miúdo de cabelos laranja, deu um pulo e atabalhoadamente, cumprimentou-a, o
pequeno chapéu nas mãos, a vibrar intensamente.

- Olá. Como
é que te chamas? Não queres entrar e comer connosco? Pareces-me muito franzino
mas, também é complicado de perceber, debaixo dessas roupas enormes... - convidou-o
e, sem esperar pela resposta do rapaz, levou-o para dentro e sentou-o à mesa.

- Senhora,
não posso. Não me é permitido - respondeu-lhe, levantando-se de um pulo.

- O que é que
não te é permitido? Comer?

- Esse rapaz
trabalha numa das casas nobres e de vez em quando faz-me uns quantos serviços
Foebe... não é costume a criadagem comer com os seus senhores.

- Que
disparate! Vais sentar-te aqui e comer tudo quanto te puser à frente.
Entendido?! - Perguntou, palavras que não formavam uma questão, mas sim uma
ordem. O pequeno assentiu, mas não sem antes aguardar pela autorização de
Solomon que, consentiu.

- Enquanto
comes, eu e o teu senhor vamos conversar um pouco... não te levantas enquanto
houver uma migalha no prato! - e afastou-se, seguida de Solomon. Mal se acharam
noutra divisão, ele roubou-lhe outro beijo furtuito. Ela sorriu e mordeu o
lábio, esperando apenas uns momentos antes de lhe retribuir o gesto.

- Por muito
que me custe afastar-te, não foi para isto que te trouxe aqui...

- Não foi,
mas isso não nos impede de não...

- Impede
sim. Quem é o rapaz? - afirmou, tentando parecer firme na sua decisão de parar
de o beijar.

- Como te
disse, trabalha numa das casas nobres e, um dia cruzei-me com ele... estava a
pedir esmola e trouxe-o comigo.

- A pedir
esmola? Mas se o menino trabalha...

- Ele não
trabalha Foebe, é explorado. Em que mundo vives?

- Num muito
melhor do que este, sem dúvida. Quando nos formos embora, o que vai ser dele?

- Não sei... - ao
aperceber-se do que a expressão no rosto dela revelava, continuou: - Foebe, nós
não podemos fazer nada. Eu ajudei-o como pude mas ele não é nossa
responsabilidade. Tu sabes o sítio para onde vamos, e a viagem que nos espera...
Queres arrastar uma criança connosco?

- Não, é
claro que não. Já sei, vou contratá-lo!

- Vais o
quê?! Foebe ele é um criado... ele foi comprado...

- Como
assim, comprado?

- Da mesma
maneira que os senhores compram cavalos, apenas com a diferença que estes são
melhor tratados. Foebe, para. Não te ponhas com ideias, já basta os problemas
que temos, não precisamos de mais! - tentou em vão dissuadi-la.

- É que nem
pensar! Não vou permitir que o rapaz volte, para essa casa de senhores -
afirmou, cuspindo as ultimas palavras. - Ele vem connosco e quando encontrarmos
a Bruxa, deixo-o ao seu cuidado.

-
Enlouqueces-te? Quem é que te garante que a Bruxa vai ficar com ele?

- Nada,
assim como nada te garantia que eu te iria acompanhar quando tomaste decisões
sem me consultares. - E ele ferveu, quando ela voltou costas e se dirigiu para
a sala de refeições... mais uma discussão que ela havia ganho sem dificuldade.

13/06/2015

Mia Devlin


Partiram
pouco depois do rapaz ter terminado a refeição. Consigo, levavam apenas o
essencial, pouco mais do que duas mudas de roupa, comida e água para as
primeiras horas de viagem. O plano era procurar a Bruxa a partir do local onde
Foebe, supostamente a tinha encontrado e, a partir desse momento, traçariam
novo plano de acordo com o que a mulher lhes dissesse. Atravessavam as ruas de
Alexandria em completo silêncio, optando por passar tão despercebidos quanto
lhes fosse possível, se bem que mais facilmente as pessoas ignorariam um
meteoro que caísse bem no centro da cidade, do que aquele elegante casal e
respetivas montadas. Até mesmo o rapaz que, depois de um banho tomado e de
trajar agora roupas mais adequadas ao seu tamanho, era bastante bonito e
difícil de ignorar. Foebe absteve-se de fazer perguntas pessoais ao pequeno,
tencionava fazê-las claro, mas teria que aguardar pelo momento certo, talvez
durante a viagem, quando já houvessem ganho suficiente confiança um com o
outro... e seria nessa altura que lhe diria, e imploraria caso fosse necessário,
para que o rapaz deixasse de lhe fazer profundas vénias de todas as vezes que
ela se lhe dirigia. O sol ia já alto no céu e a temperatura estava bastante
elevada quando alcançaram o cimo da falésia. Decidiram parar, abrigados pelas
árvores, para tomarem uma leve refeição enquanto as montadas descansavam e
preparavam forças, antes de iniciarem a verdadeira viagem. Foebe desembrulhava um
pedaço de pão e queijo, para dar ao pequeno, que passou a chamar-se Philip...
Queria eliminar completamente a vida menos boa que o rapaz tinha tido até à
data e, achou que dar-lhe um nome escolhido pelo próprio, seria um bom começo.
Enquanto preparava a refeição, apercebeu-se que uns atentos olhos pretos, a observavam
de cima de uma árvore. Recordava-se de já ter visto aquela enorme ave
anteriormente, apenas não sabia se tinha sido num sonho ou não... agora sabia não
o ter sido, ou pelo menos assim pensava. O enorme corvo observou-a ainda
durante bastante tempo, antes de se decidir a levantar voo, mas não sem lhe
deixar a certeza que a sua presença ali não era obra do acaso.

- Tenho a
sensação que estamos a ser observados - informou a Solomon, enquanto entregava
a sandes a Philip que, em silêncio absorvia cada palavra dos outros dois.

-
Observados? Por quem?

- Por um
corvo...

- É
possível. Todos sabem que os corvos e as bruxas estão ligados por um qualquer
elo que eu desconheço. Pode ser um bom sinal...

- Se o
dizes... - afirmou. Mas essa notícia por parte de Solomon, não fez desaparecer a
certeza que não eram boas, as intenções de quem a observava... Sabia que não
provinham do enorme corvo preto, mas desconhecia a sua origem e sabia serem
reais... Porém, decidiu não pensar mais no assunto e evitar dar asas à sua muito
fértil imaginação e assim, pouco tempo depois, já se achava novamente em cima
de Shadow.

Cavalgaram
incessantemente, até chegarem ao local onde Foebe tinha encontrado a estranha
mulher; as montadas, esbaforidas pela velocidade que lhes tinha sido imposta,
mostravam-se porém bastante energéticas, pode dizer-se que, satisfeitas seja a
palavra indicada, por lhes ter sido permitido correr daquela maneira e, até o
cavalo castrado que Solomon tinha comprado para Philip, se mostrara à altura do
desafio, mesmo não sendo um animal jovem. O rapaz já tinha desmontado e
preparava-se para ir ajudar Foebe que, lhe retribuiu o gesto com um sorriso...
Aquele rapaz despertava nela um instinto de proteção enorme e facilmente
passariam por irmãos, devido não só à beleza que ambos partilhavam, como também
pela cor de cabelos, olhos e tom de pele. Ele parecia uma cópia dela, mas mais
pequeno...

- Foi aqui -
apontou para o sítio onde estava caído o tronco, no qual havia feito a ferida
na perna. - Quando caí, para além de me ter magoado, ainda estraguei o meu
vestido cinzento - resmungou. - Então e agora? Sentamo-nos e esperamos? Eu não
vejo ninguém por perto.

- Sim,
esperamos. Não há mais nada que possamos fazer. Pelo menos não até eu encontrar
uma alternativa - respondeu-lhe, preso nos seus olhos verdes. Para afastar o
desejo de a  beijar, Solomon afastou-se e
foi buscar os cavalos, conduzindo-os depois, até um riacho que havia a correr
ali perto... Tinha que se afastar dela se queria pensar direito... "ela é como uma droga,
um vício para mim. O meu cérebro para na sua presença e, dada a situação, não
convém que isso aconteça frequentemente...", dizia a si próprio, enquanto tentava
controlar os três animais. Os cavalos bebiam sofregamente depois de os terem
levado ao limite, e a energia de à pouca dera lugar à ânsia de beber tanta água
quanto pudessem... apenas Shadow se mostrava como se aquela longa corrida não
tivesse passado de um mero aquecimento. Ele aproximou-se do cavalo e,
passou-lhe a mão pela sedosa crina, sorrindo de imediato... "Nem poderias
pertencer a outra pessoa que não a ela, não é verdade companheiro?!". De
repente o animal começou a relinchar enquanto batia, violentamente com as patas
no chão, parecendo ter enlouquecido sem motivo aparente. Mas não era o único,
pois os outros dois mostravam a mesma reação ao medo... Quando Solomon se
apercebeu, três cães enormes haviam-no circundado, apanhando-o completamente
desprevenido. Automaticamente, subiu para cima do garanhão negro e com os dois
outros cavalos presos pelas rédeas, passou pelo único local que os cães tinham
deixado mais desprotegido. Cavalgou tão depressa quanto pode, com os cães no
seu encalço, tão perto que, foi por pouco que um deles não mordeu a perna do
cavalo castanho de Philip.  

- Os cães!
Protejam-se! - Tudo aconteceu de repente e ele não teve tempo de dizer mais
nada. Uma matilha de lobos estava já em cima dos três cães, atacando-os, o que
lhe permitiu aproveitar aquele curto espaço de tempo para desmontar de Shadow e
entrega-lo a Foebe.

- Nem pensar!
Não vou deixar os lobos!

- Tu és
louca? Foebe são lobos! Monta imediatamente! - gritava Solomon, pronto  a levá-la à força caso fosse necessário. O
caos à sua volta era total e foi quando o primeiro lobo tombou, que tudo
aconteceu. Consumida por uma raiva como raras vezes tinha sentido, entoou um
cântico numa língua muito antiga e há muito esquecida pelos homens, uma língua tão
poderosa que tinha a força para  fazer
com que os cães caíssem mortos, nesse mesmo instante de tempo em que foi
entoada. Depois, foi ela quem sucumbiu, tomada pelo cansaço...

16/06/2015

Mia Devlin


- Foebe!
Foebe - Solomon acercou-se dela, mesmo antes de esta cair ao chão. Devagar,
baixou-a até o seu corpo estar completamente assente no solo, para depois lhe
tomar o pulso... foi com alívio que percebeu que ela estava viva, embora o seu
pulso estivesse bastante fraco e a respiração lenta. Philip que entretanto
também já se tinha juntado a Solomon, deixara os cavalos presos a uma árvore,
um pouco longe dali; foi quase um milagre não terem perdido os animais aquando
do ataque, pelo que, os deixou numa árvore um pouco afastada do sítio onde se
achavam, pois se já não havia cães, o mesmo não se podia dizer quanto aos lobos
que ainda se achavam presentes. Estes formavam agora um círculo em volta do
grupo, esperando pacientemente por algo que nem Solomon, nem Philip souberam
identificar antes da chegada da velha mulher.

- Chega-te
para lá, deixa-me ver como ela está - exigiu a Bruxa, empurrando o homem com o
seu cajado de madeira. Envergava uma túnica preta que lhe cobria todo o corpo à
exceção das mãos que, naquele dia, exibiam uns anéis enormes de ouro e pedras
preciosas, que Solomon não soube identificar. Relutante, afastou-se apenas o
suficiente para que a mulher  pudesse em tocar
Foebe, sem ele lhe atrapalhar os movimentos. Pôde perceber que, mesmo para a
idade, a velha mulher se mexia com uma destreza e agilidade incríveis e, que as
suas mãos para além de firmes, eram também de toque delicado. Parecia que um
espirito, sem matéria ou forma, se tinha apoderado do corpo daquela mulher que
usava apenas para cumprir determinado objetivo, não permitindo que a fraqueza
do corpo se interpusesse ao que estava a fazer.

- Ela está
muito fraca. Tenho que a levar para a minha casa.

- Para
Esmeralda?! - perguntou Solomon alarmado.

- Não sejas
tolo rapaz! Se não tivesse tão ocupada a pensar na pobre rapariga, juro que te
metia a cabeça naquele riacho para ver se te aclarava a mente. Um desmiolado
não me serve para nada! - afirmou a velha. Solomon resistiu arduamente à
vontade de lhe deitar a língua de fora e não fosse Philip estar ali, tinha,
seguramente, simulado que a estrangulava. - Vá, coloquem-na em cima do cavalo e
sigam-me.

- Senhora,
não quer ir no meu cavalo? - perguntou-lhe o miúdo. A velha, ia dar-lhe uma
resposta torta, mas ao aperceber-se que a pergunta tinha sido sincera,
conteve-se.

- Obrigada
criança, mas vou pelo meu próprio pé. Não te deixes iludir pela inocência de
uma rapariga que colhe flores no campo meu rapaz, pois arriscas-te a que te
seja espetada uma faca nas costelas sem dares por isso - respondeu-lhe
a mulher que, perante o ar confuso de Philip acrescentou: - Mas o que é que
vocês, jovens têm no lugar dos miolos? Pó? O que eu quis dizer foi para não
confiares nas aparências, não há nada que mais engane...


17/06/2015

Mia Devlin


O silêncio que se fez depois,
apenas era quebrado ciclicamente, pelo som dos cavalos... Solomon seguia
carrancudo por o bem de estar de Foebe depender daquela venha manhosa, como ele
se rejubilava chamar-lhe  em pensamento,
já Philip nada dizia, por toda a sua atenção estar dirigida à matilha de lobos
que os seguia à distância. Não conseguia vê-los por entre as árvores cerradas,
mas sabia que estavam por perto, pois tanto ele quanto os cavalos, sentiam
a  sua presença. Chegaram à cabana da Bruxa,
já o sol se estava a pôr por entre as árvores... depois de acomodar os cavalos no
pátio situado nas traseiras da habitação, certificando-se que os mesmos não
conseguiam alcançar a horta da mulher, entraram silenciosamente a pedido desta
que, se encontrava debruçada sobre a rapariga. O peito de Foebe já se movia de
forma mais natural, e a sua face já adquirira novamente o seu tom saudável, e
ao se aperceber disso mesmo, foi a vez de Solomon se deixar tomar pelo cansaço.
A adrenalina que o seu corpo sentira horas antes, vinha agora reivindicar a sua
quota-parte e ele, não teve outro remédio que não o de deixar que a velha
mulher lhe enfiasse goela abaixo, uma mistela que sabia pior do que cheirava.

- Homem insensato! Comportas-te
pior que uma criança. Vais beber este chá até eu te dizer para o parares de o
fazer e, caso cometas a estupidez de ignorar o que te digo...

- Está bem, está bem, já
percebi! - respondeu-lhe frustrado. - Mesmo que me esteja a tentar matar com
essa, essa coisa, não tenho outro remédio que não o de aceitar.

- É isso mesmo. Afinal não és
tão oco quanto pareces.

- Agora que já terminaram as
trocas de caricias, podem dizer-me onde estou? - Foebe estava já a tentar pôr-se
de pé, fitando aquele estranho grupo e o sítio onde estava. A casa fez-lhe
lembrar a dela própria, toda ela em madeira com móveis rudimentares, mas
resistentes e tapeçarias feitas à mão. No canto oposto ao que se achava, um
enorme caldeirão cozinhava algo que lhe cheirou a caldo de galinha e, por cima
deste, sólidas prateleiras de madeira continham diversos frascos, de diversos
tamanhos e feitios... uns com especiarias, outros com arroz e havia ainda os que
continham líquidos coloridos que, ela assumiu tratarem-se de licores. O soalho estava
maioritariamente coberto por tapetes de cores garridas que, conjuntamente com
as flores, os livros de capas grossas e as cortinas, faziam do espaço, um local
onde, claramente, não se tinha perdido tempo a pensar em decorações. Era como
se há medida que o proprietário fosse adquirindo o bem, o fosse juntando ao
acaso, sem se preocupar se conjugava se não, o que tinha resultado naquele
amontoado confuso de peças várias e tapetes diversos. Junto à porta, uma enorme
mesa de madeira maciça continha imensos pergaminhos de cor amarelada, velas
todas elas quase no fim, uma tina com água e... uma coruja, empoleirada num
suporte próprio. Pelo que se pode aperceber, o animal não estava preso, e podia
sair dali quando quisesse...

- Mas vocês são todos
chanfrados?! Para a cama imediatamente! Gastei muita energia contigo, para
agora deitares tudo a perder por não repousares.

- É muito agradável a nossa
anfitriã - disse-lhe Solomon, enquanto lhe afagava o cabelo, sorrindo-lhe,
feliz, apenas por ela estar bem.

- Assim que tirares esse sorriso
tolo da cara, podemos falar do que realmente interessa - afirmou a velha,
enquanto se dirigia para o caldeirão. - E podes parar de fazer caretas nas
minhas costas, porque se não, rogo-te uma praga que fará com que tenhas de
beber diariamente remédios piores dos que te dei. Ótimo - respondeu-lhe a
sorrir, quando se voltou e lhe viu os olhos esbugalhados. Philip, ao ver a cara
de medo de Solomon, não conseguiu controlar uma sonora gargalhada.

- Vê lá se não queres ir jantar
com os lobos que estão lá fora, fedelho - ameaçou-o o homem e, o rapaz engoliu
em seco.

- Os lobos ainda ali estão? -
perguntou Foebe, tentando pôr-se novamente de pé. Não conseguiu espreitar pela
janela, pois uma mão nodosa, mas firme, reteve-a onde estava.

- Vamos comer e depois falamos
disso. Precisas de recuperar rapariga. Utilizaste um grande fluxo de matéria e,
isso podia ter-te sido fatal por não teres o treino suficiente.

- Fluxo de matéria? - quis saber
Solomon.

- Primeiro, comer, depois a
conversa - anunciou a velha mulher num tom autoritário. Foi buscar dois bancos
e deixou-os junto da cama, para ali colocar o tabuleiro com a comida de Foebe.
A cada um deles, serviu-lhe o caldo de galinha, acompanhado de pão fresco,
queijo e vinho. Para sobremesa tiveram direito a uma deliciosa torta de
morango, feita horas antes, o que os deixou a todos, mais bem-dispostos. Depois
de os servir, a mulher abandonou a casa e dirigiu-se para a noite negra,
batendo com a porta atrás de si.

- Velha maluca! Se não
precisássemos tanto da sua ajuda, juro que a pendurava numa árvore! Pelos
pés!!! - resmungou Solomon.

- Vocês parecem um casal de
apaixonados - espicaçou-o a rapariga. Ele abriu a boca para lhe responder, mas um
vulto no fundo da sala fez com que não proferisse um único som. Ela trouxe o
cheiro da natureza consigo, uma frescura sem par, acompanhada de uma
movimentação do corpo como se fosse feita de ar e não pisasse o chão enquanto
caminhava. Era uma mulher alta, conseguiram perceber, mas não mais do que isso,
pois a sedosa capa que lhe caía até aos pés, não revelava qualquer outro
pormenor do seu corpo e, o largo capuz da mesma, tapava-lhe completamente o
rosto. Quando falou, pareceu-lhes que aquela voz cristalina provinha do fundo
de uma caverna ou de um lugar muito distante dali e a coruja, que não se havia
movida té então, foi pousar no braço que ela, elegantemente lhe estendeu.
Quando o fez, deixou a descoberto uma larga pulseira de ouro, elegantemente
trabalhada, o que vinha confirmar, a par da capa de seda azul escuro, que se
tratava de alguém bastante abastado. A misteriosa mulher acariciou
delicadamente, a cabeça ao animal e podiam deduzir que sorria enquanto o fazia:

- Que bela coruja Alvotra tem
aqui, não concordam? - todos assentiram com a cabeça, porém sem conseguirem
dizer fosse o que fosse.  - Sabrina...
transformaste-te numa belíssima e corajosa mulher. Enquanto não te for
permitido dizer-lhe pessoalmente, eu acalmarei o coração da tua mãe,
dizendo-lhe naquilo em que te transformaste.

- Conhece... conhece a minha mãe? Hum,
nobre dama - acrescentou atabalhoadamente.

- Minha querida, eu
conheço todos os mortos...


19/06/2015

Mia Devlin


Durante uns breves
momentos, o único som que se ouvia era o das suas respirações, como se o
próprio tempo tivesse ficado suspenso, estupefato com o que tinha sido
anunciado. Solomon mexeu-se desconfortavelmente no seu banco e Philip estava
branco, como se a mulher que estava à sua frente se tivesse transformado num
dos cães que os tinha atacado... Foebe era a única que, aparentemente, recebera a
notícia como se apenas tivesse sido anunciado que amanhã o sol voltaria a
nascer novamente.

- Pode dizer-me como, an...
mestra.

- Chama-me Macha, é
quanto basta.

- Macha?! Como, como a
Deusa? - perguntou Solomon como quem não sabe se há de rir, se chorar.

- Como a Deusa, belo
humano - respondeu-lhe a sorrir... ele devolveu-lhe o olhar e, tentou em vão não
engolir em seco. Uma gota de suor percorreu-lhe as costas, denunciando o
desconforto que ele sentia, bem como a vontade de desatar a correr porta fora.
De todas as histórias que ouvira em criança, as que respeitavam a Macha eram as
que mais o arrepiavam... apesar do seu aspeto deslumbrante, mágico, transcendente
(como se pode descrever alguém que é feito dos mais puros e belos traços,
alguém que por não ser completamente humano, não é possível de a sua beleza lhe
ser equiparada? Com as devidas adaptações, tanto Foebe quanto a mulher que
respondia pelo nome da Deusa, eram como duas gotas de água, caso fosse alguma
vez possível comparar um ser terreno a um divino...). Contudo, apesar do seu
aspeto, Solomon sabia como aquela mulher podia ser tão cruel quanto letal para
com o seu inimigo e, até ver, ele não sabia de que lado ela estava. Os deuses,
à semelhança dos homens, têm sempre uma justificação que aos seus olhos é
válida...não são, nem pretendem ser as mais bondosas criaturas que possam existir
e por isso, contar apenas com amor da sua parte pode significar o abandono do
mundo dos vivos... Aqueles que os provoquem serão alvo da sua ira e, quando esta
se abate sobre os homens, poucos são aqueles que lhes sobrevivem para contar o
que aconteceu... por norma, são os jograis aqueles que são poupados, pois é
intenção dos deuses que a história se perpetue pelas Eras, fazendo ecoar por
toda a eternidade, os feitos de que são capazes...

- A minha mãe...

- A tua mãe criança,
foi uma das maiores bruxas que eu alguma vez conheci. E, pelos seus feitos,
prometi-lhe que te protegeria sempre e cuidaria para que aprendesses a Arte.
Sempre que precisares invoca-me e eu estarei presente, serás a minha
prioridade. Porém, advirto-te que não irei tolerar qualquer desrespeito da tua
parte, terás que merecer ser digna que te acompanhe e, tudo tem um preço... Tens
que estar consciente disso. Alvotra dir-te-á tudo quanto precisas de saber. Em
relação à tua mãe... ela está... bem - e, foram as últimas palavras antes de se
fundir na penumbra que preenchia aquele lado da sala. No seu lugar ficou somente
um espaço vazio, mais frio que o resto da sala e mais quente também.

- Pelo menos está do
nosso lado... já é uma coisa boa - avançou Solomon, com o melhor sorriso que
conseguiu colocar. Perante os olhares interrogatórios dos outros dois,
acrescentou exasperado - Em que planeta vocês vivem? Têm noção de quem se
apresentou à nossa frente? Nunca ouviram falar das três Morrighan? Na colheita
de Macha? - perguntou atónito. - Alvotra que vos explique, pois eu acabei de
gastar o último pedaço de energia que me restava... estive mais perto da morte
nestes últimos dias que em toda a minha vida e, tenho comigo, duas pessoas que
nunca ouviram falar em Macha!!! Estamos perdidos!!!

- É claro que os gritos
semelhantes a uma galinha, cujas penas lhe foram sendo arrancadas uma a uma, só
podiam ser teus - afirmou Alvotra aquando da sua entrada. Nos braços trazia um
punhado de ervas que Foebe não conseguiu identificar, mas que podia seguramente
perceber pelo cheiro, que iriam deixar um gosto amargo na boca daquele que
tivesse a infelicidade de beber do seu chá... Ao ver que Solomon torcia o nariz
ao avaliar as ervas, a velha mulher apressou-se a acrescentar: - Sim, meu jovem.
Fui buscar mais umas plantas para a infusão que terás que beber, até eu dizer
que bastará. Devias alegrar-te, pois dei-me ao trabalho de ir procurar umas
outras, mais fortes que aquelas que te dei da última vez.

- Oh, claro. Agradecido
uma vez mais por estar a tentar matar-me com... - e não concluiu, pois o olhar
que ambas lhe lançaram foi mais do que suficiente para cavar um buraco até ao
fundo da terra e para lá se atirar ate lhes passar a neura.

- Com que então ela já
aqui esteve... afinal, sempre veio pessoalmente... Deves ser mesmo muito importante
criança, para que a Deusa se tenha dado ao trabalho de aqui vir transmitir-te a
mensagem. É uma grande honra, para todos vocês.

- Claro, mas só a
partir do momento em que fiquei a saber que a mesma estava do nosso lado e não
pronta a levar as nossas cabeças como recordação! É das mais poderosas e
mortíferas deusas de que há memoria...

- Eu nem vou perder o
meu tempo, que já é pouco, a tecer qualquer comentário mas, em certo ponto até
tens razão - respondeu Alvotra, para depois acrescentar: - Mas escusas de
inchar feito um peixe balão, lá porque acertaste uma vez por sorte, não
significa que tenhas sido abençoado com miolos. E agora vamos dormir, amanhã
quero-vos a pé mal o sol nasça. Há muito para aprender antes de iniciarem a
viagem que mudará a vida de todos, para sempre.

- Como assim? - quis
saber Philip.

- Vocês levarão
convosco a esperança de todos os Homens... infelizmente estão todos demasiado
ocupados nas suas vidas mundanas para se aperceberem do perigo mas, tratarei
para que estejam preparados caso seja necessário.

- Não percebi nada, mas
estou demasiado cansado para conseguir perceber seja o que for - respondeu-lhe
o rapaz, já a aninhar-se por entre os grossos cobertores que, serviam de cama
improvisada no chão.


...


 

Ainda mal o sol havia
despontado no horizonte e já eles se achavam de pé... Solomon não conseguia
emitir qualquer outro som que não se assemelhasse a um grunhido, muito
semelhante ao de um urso com dor de dentes, Philip, embora não tão mal, não
estava porém, muito melhor e, até mesmo Foebe, habituada que estava a
levantar-se cedo, tinha tido dificuldades em sair da cama. Após terem tomado o pequeno-almoço,
e muitas xícaras de chá preto depois, receberam as instruções, distintas para
cada um, que teriam que executar sem questionar. Solomon devia aprender a
manusear a espada como um verdadeiro mestre de armas,  enquanto que a Philip foi-lhe transmitido o
saber de todos aqueles que usam o arco como arma. Para isso contaram com a
ajuda de dois homens cuja identidade Alvotra cuidou para que permanecesse
secreta. Foebe ficaria ao cuidado da última bruxa, para que aprendesse tanto da
Arte, quanto lhe fosse possível face à falta de tempo de que dispunham. Pelo
que a velha mulher lhe explicara, Foebe era uma natural, uma mulher que herdara
o dom pela sua mãe, logo uma bruxa de pleno direito pelos laços de sangue.
Passaram-se longas e duras semanas desde que iniciaram os respetivos treinos e,
se não estavam ainda prontos aquando da altura da sua partida teriam que
aperfeiçoar as técnicas durante a viagem. Alvotra não foi muito útil no que
respeitou ao esclarecimento das dúvidas colocadas por Foebe e esta última, pouco
ou nada tinha conseguido aprender no que respeita ao manuseio da Arte ... somente
um dos Elementos havia respondido à sua chamada... mas, embora se esforçasse por
invocar os espíritos presentes nos restantes, apenas o Fogo a atraía como a um íman
e apenas com este, desejava manter um contacto constante, custando-lhe sempre
ter que o deixar partir, quando terminava... A velha mulher ralhava-lhe para que
Foebe se esforçasse mais para trabalhar com os outros espíritos e, fugia-lhe
sorrateiramente sempre que a rapariga lhe dirigia uma pergunta privada... Questões
que respeitavam a Carmandor, a ser a herdeira, à morte dos seus pais... sabia
agora muito mais do que quando iniciou a viagem havia tantas semanas atrás,
porém, não era suficiente. Não sabia porque o Rei Negro a queria, não sabia
porque é que a Deusa se predispusera ela própria a acompanhá-la... apenas sabia
que tinha até a estação findar para comparecer ao encontro que lhe fora
imposto. Parte dela queria obter respostas e apenas Carmandor lhas poderia dar,
contudo, outra metade de si apenas queria ficar ali, em paz junto de Solomon...
Desde que iniciaram os respetivos treinos, não conseguiram mais do que trocar
rápidas palavras ao fim do dia, antes de caírem mortos de cansaço... ela sentia
medo... Medo pelos sentimentos que nutria por ele, medo pelo futuro, medo por
quem era e por quem haveria de se tornar... Alvotra dissera-lhe que raras são as
vezes que uma bruxa poderosa se casava com um homem comum... não porque fosse
impedida por alguma regra que abrangesse as mulheres capazes de praticar magia,
apenas porque eles não aguentavam ficar na sombra de tais mulheres e,
consequentemente, o seu orgulho masculino destruía a maior parte dos
matrimónios contraídos. Ela contemplava-o enquanto este derrubava, pela
primeira vez o seu oponente... Solomon rejubilava com a vitória quando os seus
olhares se cruzaram... e assim permaneceram, a olhar cada um, para a alma do
outro...

23/06/2015

Mia Devlin


- Desculpem
interromper, mas... - disse Philip atabalhoadamente, para depois acrescentar: -
Mestra Alvotra mandou que nos reuníssemos na clareira.

- Agora?! Mas eu estou
todo suado... vou tomar banho primeiro e reúno-me convosco depois.

- Aaaah, eu acho que a
Mestra quando disse "todos" e "agora", significou mesmo, "todos" e "agora" -
respondeu-lhe o rapaz. Solomon olhou com cara de poucos amigos para Philip,
porém nada disse, consciente que a culpa não era do mensageiro, mas sim daquela
"velha bruxa maluca", como a chamava. Quando chegaram ao local, Alvotra já lá
se encontrava e com ela, dois dos lobos que tinham saído em defesa do grupo
aquando do ataque dos cães. Solomon engoliu em seco e Philip deixou-se estar
onde estava... apenas Foebe avançou como se aqueles dois animais, não fossem nada
mais perigoso que dois pintinhos amarelos. Ao chegar junto deles conteve-se por
momentos antes de lhes tocar... eram lobos enormes, o Alpha e a Beta da matilha
pelo que deduziu da sua altivez... o pelo de ambos era suave e espesso, alterando
entre os tons de castanho, cinzento e branco. Eram animais magníficos,
detentores de um porte e postura como havia poucos... ela sabia que podia
perder-se durante horas na sabedoria que aqueles olhos dourados possuíam... como
se... sentia que aqueles olhos continham tantos segredos quantos os havia no
tempo...

- Reconheceste-os
portanto...

- Reconheci quem? -
perguntou, com o ar de quem é arrancado abruptamente de um pensamento distante.

- Os lobos... são velhos
conhecidos teus. Estiveram presentes aquando do teu nascimento assim como o
estarão aquando da tua morte. Não quero dizer com isto que a encontraras em
breve, mas sim que eles sempre te acompanharam e sempre te acompanharão.
Fizeram um pacto com a tua mãe que, como já te foi dito, foi uma bruxa muito
poderosa e, não sei a troco de quê, prometeram-lhe que velariam por ti enquanto
fossem vivos - esclareceu-a a velha mulher. O silêncio que pairava no ar era
sepulcral, quebrado apenas de quando em vez, pelos passos de Solomon que,
tentava em vão, chegar até eles de forma discreta. - Ah, que bom que decidiram
contemplar-nos com a vossa presença - continuou irónica, - pfff homem, precisas
de tomar um banho... - acrescentou, com o dedo no nariz. Foebe teve que voltar o
rosto para baixo para evitar que Solomon a visse rir. Este tentou transmitir a
pouca dignidade que conseguiu reunir, adotando uma postura descontraída como
quem não se importa com a opinião alheia... - Ainda bem que estamos ao ar livre...
- continuou viperina -, se bem que, com o olfato apurado como os lobos têm, não
tarda nada desmaiam... Bom, serei breve 
então. O grupo que deverá acompanhar Sabrina na sua primeira batalha
contra as trevas, está quase formado, sendo que, os elementos em faltam
reunir-se-ão convosco durante o percurso. Com vocês, irão também os dois
mestres de armas aqui presentes e, é tudo.

- "Batalha contra as
trevas"? - perguntou Solomon.

- Sim rapaz, a não ser
que queiras desistir dela sem lutar. Como anteriormente mencionei, eu não vos
acompanho para já, porque primeiro tenho que reunir homens em número
suficiente... se assim não for estamos tramados - afirmou entredentes. - Tenciono
encontrar-me convosco dois, três dias no máximo, depois da vossa chegada. Até
lá, apenas têm que se manter vivos.

- Então porque é que
não esperamos para partir todos juntos? - perguntou Foebe.

- Porque ele não pode
desconfiar que um batalhão pretende enfrentá-lo. Contigo nas suas mãos
rapariga, espero que ele abra uma brecha na sua guarda... é o único modo de o
conseguir enfrentar... Se conseguir chegar perto dele o suficiente talvez o
consiga matar... e conto que aperfeiçoes o teu dom durante o tempo até lá, para
que me ajudes nessa tarefa.

- Então a intenção é
dá-la durante dois dias, para ele fazer dela o que quiser? Nem pensar! Não vou
permitir que isso aconteça!

- Meu rapaz... eu sei que
tenho sido dura contigo até então mas, se o fiz tive os meus motivos. Eu
acredito no teu carater e cuido para que a protejas até eu chegar a vocês. Os
meus poderes já não são o que eram, em parte graças a Carmandor, mas se há
faculdade que ainda não perdi foi a de saber reconhecer um coração justo e
forte, e tu meu jovem, possuis essas duas características. - Solomon balançava
entre a risada e o desespero... a primeira porque a implicância que Alvotra tinha
demonstrado até então não estava relacionada com o fato de o achar um incapaz...
já o desespero provinha da certeza que o preço por saber disso mesmo, tinha
sido bastante elevado... a consciência que dependia dele, evitar que Foebe caísse
nas mãos do pior homem que o mundo conheceu até então, dilacerava-o.


25/06/2015

Mia Devlin


Depois de prenderem os
pertences às respetivas montadas, todos eles olharam para a pequena casa com
pesar, como se não mais voltassem ali. Até mesmo os lobos pareciam sentir-se de
igual modo, inquietos face ao que tinham que enfrentar. Alvotra ficou a
acenar-lhes até desaparecerem de vista e quando a imagem dos sete desapareceu
por entre as árvores, foi ela própria tratar das sua montada... "Que a Deusa vos
proteja e que a mim me conceda o tempo suficiente...".


...

Cavalgaram durante
quase todo o dia e quando os cavalos finalmente revelaram sinais de cansaço, pararam
já o sol se começava a pôr. Os animais estavam exaustos mas, devido a uma
qualquer força invisível, a sua energia parecia ter sido inesgotável até então...
como já era costume, apenas Shadow se mostrava disposto para mais umas horas de
corrida...

- Mais um bocado e
ficava com o traseiro quadrado - queixou-se Solomon - alguém devia inventar
selas mais confortáveis.

- Não te queixes, os
cavalos tiveram o triplo dos trabalhos e não os vês com salamaleques -
disse-lhe o mestre de armas responsável pela sua aprendizagem.

- Alvotra deve ter-te
passado o testemunho no que respeita à provocação da minha pessoa, está visto -
resmungou. O outro homem, Dylian, como pediu para ser chamado, riu-se o que foi
estranho, devido ao semblante de pedra que apresentava na maior parte das
vezes. O local onde um dos mestres de armas indicou como sendo o melhor para
pernoitar, achava-se localizado dentro de uma concavidade no solo, como se um
pedregulho de gigantescas proporções tivesse ali caído havia muitas Eras atrás
e que, na Era atual dele só restasse o enorme buraco. Em toda a volta, galhos
partidos dificultavam-lhes a vida quando tentavam arranjar um sítio para por as
mantas e, onde não havia galhos, existiam arbustos espinhosos. Foebe
preparava-se para acender uma fogueira, quando o homem encarregue pela
aprendizagem de Philip, lhe atirou areia para cima, impedindo-a de dar continuidade
ao que estava a fazer, chateada foi por pouco que não lhe deitou a língua de
fora, porém da sua  língua afiada ele não
se livrou: - Ei, a fogueira ia servir para nos aquecer durante a noite! Para
além de que iria manter os animais selvagens afastados.

- Se queres manter os
animais selvagens afastados, não vejo melhor alternativa que os lobos... só tens
que te preocupar com as cobras. E para te aqueceres... bom, as capas terão que
bastar.

- Mas porquê?

- A matilha que nos
segue não bastará para nos defender em caso de ataque... faz apenas o que te digo
- concluiu o homem, não permitindo quaisquer outras perguntas. Quando se
afastou, Foebe começou a resmungar, enquanto tirava os mantimentos da sua
sacola.

- É bom saber que não
sou o único a quem poem mal disposto - brincou Solomon. Quando viu o olhar
furioso que a mulher lhe lançou, achou por bem não dar asas a comentários
semelhantes. - Tenho saudades de falar contigo... a sós... - disse-lhe, enquanto
estendeu a mão para lhe tocar no rosto. Foebe levantou-se de imediato,
rejeitando o seu gesto... evitou encará-lo nos momentos que se seguiram, o tempo
suficiente para recuperar o domínio sobre as suas emoções. - É melhor não -
disse, num tom de voz tão firme quanto o que conseguiu invocar - ... as
consequências do nosso envolvimento podem ser terríveis - foi tudo o que
conseguiu acrescentar. Ele estava de pé perto dela, segurando-a pelos ombros.
Quando percebeu que Dylian os observava, baixou o tom de voz, mas não o
suficiente ao ponto de perder dureza: - Eu vou esquecer o que disseste e julgar
que foi pelo sol que apanhaste na mioleira. Foebe eu não vou desistir de ti
portanto, o melhor que tens a fazer é aceitar isso mesmo. E agora, coloca de
lado esses dramas femininos e vem para junto dos outros. Tu não sei, mas eu
estou esfomeado e até os lobos já saíram em busca de caça... - Ela assentiu e
seguiu atrás dele, detendo-se um tempo, para afagar o pescoço do seu cavalo. -
Foi um dia cumprido, não foi companheiro? - e encostou o seu rosto sobre o
dorso do animal. Agora que se distanciava de casa como nunca havia feito, é que
se apercebeu do valor que a sua vida pacata de até então, tinha tido. Suspirou
e, depois de ajeitar a crina de Shadow, juntou-se ao grupo que formava um
pequeno circulo no centro da concavidade, enquanto distribuíam a  comida entre si.  Quando chegou, apercebeu-se que os homens
estavam numa discussão acesa sobre os perigos que tinham que enfrentar, o que a
deixou levemente angustiada. Mesmo depois de tudo quanto assistiu e sentiu,
ainda não estava completamente mentalizada que ia de encontro, a um dos piores
homens que alguma vez tinha existido... Sentia-se como um rato, a quem o gato
sorri antes de desferir o golpe final...

- Carmandor não
hesitará em cortar-te o pescoço se te aproximares demasiado - declarou o mestre
de armas sem nome para Solomon que, recebeu a notícia com um esgar. Pelo modo
em como este desviou o assunto quando se apercebeu da chegada de Foebe, deixou
claro que era dela que falavam... seria preciso ter-se o miolo do tamanho de uma
ervilha para não se perceber, tal foi a descrição com que o fez...

- Senta-te rapariga.
Aqui o auto proclamado herói, tencionava enfrentar Carmandor ao invés de te
entregar - informou-a Dylian.

- Obrigada pela
descrição... alcoviteiro - resmungou, indiferente ao olhar ameaçador que o outro
lhe lançava.

- Rapaz, nós já somos
fracos unidos, se guardarmos segredos uns dos outros é certo que nem do portão principal
conseguiremos passar.

- Isso vindo de quem
nem o próprio nome diz, é no mínimo irónico - desafiou-o Solomon.

- Tens razão... contudo, os
nomes são algo muito poderoso meu rapaz. É um saber que as pessoas esqueceram
com o tempo, mas muito precioso para mim. Podes chamar-me... Forjha, seguro que
este não é o meu nome verdadeiro.

- É esse o motivo pelo
qual Carmandor me chamou, "Sabrina"? - perguntou, cuspindo esta última palavra.

- Por certo criança,
por certo... - respondeu-lhe Forjha.


27/06/2015

Mia Devlin


Foebe torceu o nariz,
sem conseguir perceber se a resposta lhe agradara, se não. O resto da refeição
foi passada entre conversas banais, pesca, agricultura, política... quem os
visse, tomá-los-ia por um bando de forasteiros que anda de terra em terra, sem
um local a que pudessem chamar de lar. Não era incomum de quando em vez,
surgirem na cidade pessoas assim que, a troco de umas moedas de cobre, punham os
outros ao corrente dos acontecimentos e coscuvilhices passados nos outros
reinos. Haviam combinado fazer turnos durante a noite, não fosse dar-se o caso
de aparecerem animais selvagens... o que nenhum deles queria admitir é que não
era dos animais selvagens que tinham medo, mas sim de enormes cães domésticos... cães
que não eram apenas cães, que continham algo... humano.

O primeiro a fazer a
ronda seria Forjha e depois deste Solomon que, por seu turno, seria substituído
por Dylian. Decidiram entre os três que não acordariam Foebe, apesar da certeza
que iriam ficar com os ouvidos a sangrar, quando ela acordasse... ser-lhes-ia
difícil explicar que não fora por não confiarem nela que não a chamaram, muito
menos por a acharem frágil... muito pelo contrário, pois segundo Alvotra esta
rapariga era tão, ou mais dotada do que fora a sua mãe e, ninguém colocava em causa
o que a velha mulher dizia; porém não se podiam dar ao luxo que algo lhe
acontecesse, por isso, optaram pelo risco de uma possível perfuração dos
tímpanos a perder aquela que, seria muito provavelmente a salvação de todos
eles.


...

Solomon lutava por
manter os olhos abertos... já tinham iniciado a jornada há quinze luas e até à
data, nem sinal dos cães ou de qualquer outro perigo. Tentara convencer os
mestres de armas de que era inútil manterem as vigias, mas eles mostraram-se
irredutíveis em não as deixarem de fazer. No fundo sabia que seria uma
irresponsabilidade caso ninguém ficasse de atalaia a assegurar a segurança dos
outros mas, esse era um pensamento difícil de manter quando se luta contra o
sono enquanto todos os outros descansam. Tinham sido dias bastante duros devido
ao calor que se fazia sentir e, pese embora à noite arrefecesse um pouco, essa
diferença de temperatura não bastava para que não o fizesse transpirar.
Levantou-se, certo de que se não o fizesse acabaria por adormecer... depois de
passar os olhos pelos companheiros que, mais não eram que vultos indistintos na
noite, foi molhar o rosto ao riacho junto do qual acampavam. Quando se debruçou
para a água, viu o reflexo na água de algo gigantesco que pairava acima da sua
cabeça. Quando se virou para perceber ao que poderia pertencer aquela figura,
nada mais havia do que um céu estrelado. Um arrepio percorreu-lhe a espinha,
mas não lhe ligou, atribuindo aquela visão ao cansaço.

01/07/2015

Mia Devlin

Voltou para o seu
posto, mas não sem antes se certificar que os outros dormiam em segurança. O
que viu gelou-o até aos ossos... uma forma indistinta achava-se curvada sobre um
dos corpos e quando Solomon fez soar o sinal de alarme, a enorme criatura
elevou-se no ar e voou para longe, perdendo-se na noite escura. No acampamento,
o caos era total... os que ficaram, embatiam uns nos outros ou, num qualquer ramo
que se achasse no chão, naquela corrida desenfreada causada pelo medo. Apenas
dois vultos peludos se mantiveram imperturbáveis no ataque de que foram alvo e,
estes seguiam agora no encalce da criatura disforme, conjuntamente com os seus
irmãos de matilha.  Foebe tentou alcançar
a paz de espirito e concentração que Alvotra lhe havia ensinado e, pese embora
não tivesse sido bem sucedida das primeiras veze, conseguiu invocar o espirito
do fogo para que este arde-se sobre um pedaço de madeira, de modo a iluminar
todo o acampamento. A segurança que a luz carrega consigo, surtiu efeitos
imediatos quando todos estacaram, concentrando-se no que havia à sua volta, ao
invés de apenas correrem sem rumo... Olharam uns para os outros expectantes, sem
proferir palavra, aguardando que alguém lhes dissesse o que tinha acontecido. A
resposta às suas questões não veio de imediato, embora no ar fosse percetível a
presença de algo, ou de alguém, que trazia consigo o desconforto de saberem não
estar sozinhos na penumbra... era assustador sentir que existia, ou existiu algo
que, deixou no ar o cheiro da... morte... e pior, não saber quem, ou o quê provocou
o ataque.

- Onde está... onde está
Forjha? - perguntou Dylian. O ar perturbado com que o Mestre de Armas falou,
deixou os restantes petrificados com medo... nada parecia perturbar aquele homem
talhado em pedra, de modo que, quando a sua voz vacilou, todos os outros
vacilaram também, como pedras de dominó que, após a queda da primeira peça,
todas as outras tombam também, como se tivessem ligado por um qualquer fio
invisível.

 Aquelas semanas que haviam passado juntos
tinham servido para algo mais do que definir estratégias... algo nascera no
pequeno grupo, um sentimento que era em si mesmo um misto de amizade e fé uns
nos outros... Inconscientemente foram formadas, não hierarquias mas algo muito
semelhante a tarefas específicas atribuídas a cada um, sendo as dos Mestres de
Armas, as que respeitavam à liderança. Quando assumiram o comado sobre o
pequeno grupo ninguém os contestou, conscientes que, se havia alguém que os
podia fazer chegar ao Reino Oculto, terras de Carmandor, seriam seguramente,
eles. Contudo, ao depararem-se com a realidade, que tal como os demais, aqueles
dois homens imperturbáveis eram humanos e assim perecíveis de que algo lhes
acontecesse, o medo e incerteza pairavam no ar, como uma neblina invisível que ameaçava
engoli-los a todos.

- Eu vi... eu vi um vulto
na água, mas tomei-o como cansaço... - pigarreou Solomon - foi apenas quando
regressei para verificar se todos estavam bem que... vi um vulto sobre um dos
corpos... dei o alarme e... e depois foi o caos total.

- Que forma era essa? -
perguntou Foebe, antecipando-se depois na resposta: - Uma águia das montanhas,
provavelmente. Só pode... só um animal daquela envergadura poderia ser capaz de
erguer alguém com o peso de Forjha - concluiu.

- Não, não me parece... o
que eu vi, não se assemelhava a uma águia... parecia um homem com ... asas de
morcego - respondeu a medo, receoso que o tomassem como louco.

- Então é pior do que o
que eu julgava... ouçam-me com atenção, todos vocês. Temo que dificilmente
consigamos alcançar o nosso destino sem ajuda - afirmou Dylian, já com a
segurança na voz que lhe era caraterística, apesar das notícias não serem as
melhores. - O que viram foi uma criatura criada a partir da mais pura
putrefação... e não me refiro à da carne. Era um 
Marguyl, uma criatura das trevas, obra de Carmandor. Segundo as lendas,
estas criaturas foram criadas a partir de homens que, a troco da imortalidade,
se submeteram a serem transformadas... naquilo. Criaturas grotescas que nada mais
desejam para além de sangue... só obedecem a um homem e por ele morrem se necessário...
segundo o que sei, são também muito difíceis de matar e, caso tenham a
infelicidade de eles não os matarem no momento, as pessoas ou outros seres que
por eles forem mordidos, terão uma morte lenta e agonizante pois o veneno, ou
lá o que é, que eles têm na boca destrói tudo em que toca - concluiu. O
silêncio que se fez era sepulcral, ninguém se atrevendo sequer a respirar.
Todos eles se sentiam de igual modo, como se tivessem levado um murro no
estômago, impedindo-os de manter uma respiração regular.

- Que seja. Se eles são
assim tão temíveis nós não lhes ficamos atrás. Que um raio me queime se vou
permitir fugir que nem um coelho de um gavião! Agora que sabemos da sua
existência, não mais nos deixaremos apanhar de surpresa - declarou Solomon.

- A tua coragem é de
louvar mas, assim como estamos, somos presas fáceis. Aquelas criaturas tombam
perante a água, portanto é para lá que vamos agora, pelo menos ficaremos a
salvo.

- Porque é que falas deles,
sempre no plural? - quis saber Philip.

- Porque eles caçam em
bando...

03/07/2015

Mia Devlin